terça-feira, 30 de setembro de 2008

IMPREVISTO - conto premiado

Foi quando ele disse: “não quero mais esse negócio de você longe de mim” que a coisa se complicou. 
Como assim?
Então tenho que ficar grudada nele o dia inteiro? E o que vai ser da minha vida, minha carreira, minha realização, minhas coisas? E eu? E eu? Como podia dizer uma coisa dessas? Entrei em parafuso. 
A partir daquele momento, tudo o que ele dizia era como uma flecha certeira dirigida a mim. Me esquivei. Ele pensa que me pega!!!! 
Fiquei arredia e, sem explicações, passei a trabalhar em dobro. Não vou deixar que ninguém me coloque numa situação de dependência! Porque não deixa ele de fazer as viagens que precisa, de trabalhar até tarde e de se meter na minha vida? Porque? Não poderia ter me dito uma frase mais terrível. 
Tentou se explicar. Não foi neste sentido, eu só queria ficar mais tempo com você, eu gosto da sua companhia, eu te quero tanto! 
Depois da luta para conseguir uma posição, iria eu regredir a este ponto de ficar seguindo os passos dele? Não, eu não! 
Não precisa ficar grudada em mim, não é isto, disse ele! Por favor, não me entenda mal! 
Ele pensa que me pega? 
Aceitei novos desafios, dobrei o numero de viagens. Tinha de mostrar a ele que a empresa precisava de mim, eu era importante, eu não precisava dele. Eu, mulher incrível, moderna, executiva, inteligente. Eu! 
Ele, continuou sua vida, seu ritmo, seu trabalho mas aumentou seus momentos tranqüilos em casa. Eu, estava ali cada vez menos. 
As leituras lado a lado no sofá não mais aconteciam, o escutar das musicas de nós não mais fazia parte das noites. A frase tinha sido um marco em nossas vidas, uma decepção. 
Ele sabia. Talvez por isso, nos poucos momentos em que nos encontrávamos, ele nada dizia. 
Ele sabia! Apenas me olhava. 
Pensa que não percebo o olhar de recriminação? Pensa que não percebi no que você quer que eu me torne? 
Eu ia provar a ele, eu ia dizer a ele, eu ia mostrar a ele. E quando visse de tudo o que eu era capaz ele se recriminaria para sempre pelo que tinha pensado em fazer com nós dois. 
Imbuída desta força fui em frente, sem vacilar, sem descansar, sem parar. Será que ele ainda pensa que me pega? 
Numa noite de primavera cheguei mais cedo em casa. Tudo quieto demais. No quarto, portas abertas e o armário vazio. A escova de dentes, o barbeador, o roupão atrás da porta, tudo se fora. Ele se fora. 
Deixei meu corpo cair no sofá e meu olhar perdeu-se estático, no vazio. E agora? 
Estranhamente, fui assaltada por uma sensação de paz. Tomou meu corpo, esquentou meu coração, e meus lábios sorriram como há muito não acontecia. Abalada compreendi. 
Ele sabia! 
Inconscientemente eu planejara este desfecho e viver longe dele fora, desde o inicio, meu único objetivo. 
Peguei o telefone, desmarquei a viagem do dia seguinte e comecei a planejar minhas férias. 
Publicado no jornal O estado de São Paulo em 19/07/2008

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Pequenez

Na grandeza de teu abraço sem perguntas, 
minha pequenez se faz enorme e sigo, 
desconhecida por ti, 
a pesquisar teus caminhos. 
Entrego-me, despojando-me de dores, 
ao ventre de tua casa em musica, 
a arrepiar-me em arpejos tocantes,
em troca de palavras, 
na profusão de instantes. 
Enquanto, como vinho, 
nos sorvemos aos goles, 
abandono-me ao teu abraço forte 
enrosco meu corpo em tua cama grande, 
e encontro, em teu peito, 
calmo aconchego. 
Num sussurro, 
peço que me leves contigo 
por caminhos teus conhecidos 
e deixo que me faças ousada e amante 
no teu leito entremeado de flores, 
na maciez de teus cobertores
29/09/2008

Vazio

Talvez seja necessário sentir um sofrimento enorme, daqueles que faz perder o fôlego, dispara o coração, faz pular lágrimas incontroláveis.
Talvez seja necessário ficar pasmo. Petrificado, sem ação, sem credulidade alguma. Sentindo o ar que entra pela boca aberta, tomando conta de um buraco incrédulo dentro de todo o corpo.
Talvez seja necessário sentir a morte dos entes queridos que arranca de nós a presença reconfortante e deixa um eterno não entender o porque e um permanente hiato nas relações com o mundo.
Talvez seja necessário perder amizades que confortavam e completavam, restando uma mágoa profunda que toma conta de todos os cantos internos e externos.
Talvez seja necessário perceber a falta de entendimento e compreensão quando o que dizemos bate no outro de uma maneira completamente contrária ao que queríamos dizer e fica a certeza de que não existe explicação que ocupe o silencio repleto da triste constatação de não existir palavra alguma possível de fazer-se entender.
Talvez seja necessário perder grandes amores, que se vão depois de ter acalentado, embalado, ocupado todo o espaço, deixando um oco tão avassalador que não prevê o vislumbre de qualquer possibilidade de renovação.
Talvez seja necessário sentir um vazio.
Daqueles que aperta, espreme, torce, machuca, abre feridas e não deixa sobrar nada.
Talvez, tendo passado por tudo isso seja possível buscar forças e criar raízes dentro do escuro. Talvez aos poucos as raízes crescerão e se espalharão criando folhas, frutos e flores.
Talvez seja possível, afinal, reocupar o buraco escuro e oco e enfim, renascer.
Algum dia, talvez.
07/11/2006

sábado, 27 de setembro de 2008

Estranho

Existem pessoas estranhas.
Que fazem coisas estranhas.
Existem pessoas que dizem
que outras pessoas fazem coisas estranhas,
mas não ousam contar
que coisas estranhas as pessoas estranhas fazem.
Não sei por que pessoas estranhas
fazem coisas estranhas
com pessoas que, ao menos a mim,
não parecem estranhas.
Pode ser que algumas pessoas
que não parecem estranhas,
sejam estranhas.
Eu fico sempre curiosa.
Queria saber o que as pessoas estranhas
fazem de tão estranho,
que as pessoas que não me parecem estranhas,
estranham,
comentam,
mas não contam o que é.
Talvez seja estranho
ficar curiosa dessa maneira.
Se eu fico curiosa e,
se ficar curiosa pode ser estranho,
então sou estranha também.
Mas estou super curiosa para saber,
o que em mim é estranho.
Que estranho!
09 de março, 2005

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Da visão das coisas

Há momentos em que as coisas se transformam e não se conta, pois ninguém acreditaria.
Aos poucos, procura-se mostrar a realidade. Mas como mostrar?
Ninguém vê as coisas da mesma maneira.
Eu, Por exemplo, estou vendo as nuvens embaixo dos seus pés e os móveis que voam por sobre a sua cabeça, sem atingi-la.Precisei pular para alcançar uma poltrona.
De qualquer maneira, foi bom conseguir pegá-la para poder sentar-me e procurar analisar o que acontece.Você não se importa e parece estar feliz enquanto os móveis, e também as coisas do mundo, passam a voar.
Seria a força do seu pensamento? Ou um capricho da natureza?
As coisas passam pelos seus olhos sem que você tenha que se esforçar para vê-las e, a seu modo, você acha que viu tudo. Com um sorriso. Enfeitiçado.
Eu viro a cabeça para todos os lados e fico com medo de que algo me atinja.
Porque será que você faz tudo voar?
Pulo novamente e seguro um caderno e um lápis. Pelo menos assim sinto-me mais segura.
Acho que você não precisa de nada completamente seu para sentir-se seguro e decidiu ficar sempre ali, enquanto as coisas voam.
Eu, da poltrona, assisto a tudo, pasma.
09 de dezembro de 2004.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Salsa

O molho tinha que ter salsa, ela dizia. Sem salsa não seria igual.
Cansativo picar. Ela dizia que se não fosse bem picado, não teria o mesmo gosto.
Então picava e picava e lá vinha ela: ainda não está bom, pique mais um pouco.
Pensou que quando crescesse, faria tudo sozinha. Ou melhor, se alguém quisesse ajudar, aceitaria que picassem como quisessem. Salsa tem o mesmo gosto, picada maior ou menor.
Lá vinha ela de novo: quer uma faca melhor? Que demora!
Então concentrou-se e picou. Minimamente, minuciosamente, incansavelmente.
Quando veio de novo, ela gostou.
Assim sim!!!! Está vendo como você sabia?
Almoço servido, chamaram a todos.
Sentou-se à mesa e lembrou-se da faca, da salsa e do som da voz dela dando ordens.
Que oportunidade perdida, pensou, de sentir-se útil e feliz.
Perdeu a fome.
Levantou-se e, sem olhar para trás, deixou a sala.
03/12/2007

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

POETA CONVIDADO - Sylvia Loeb

Enquanto não me acho e não me escrevo, enquanto naõ me digo, não me sei e não me quero ontem e nem hoje, aqui não me coloco. Na falta de mim, mais uma vez Sylvia.
VAI LÁ
Vai lá você me disse Sem dizer o que eu ia encontrar Vai lá você repetiu Me dando coragem para eu chegar lá. Cheguei lá e encontrei você enrolada num soluço de dar dó, toda nua, toda triste cheguei perto, você sorriu disse que o que eu estava vendo não estava vendo que você estava feliz, que o soluço que ouvi foi só um espirro e me convidou para dançar.
06/09/2008
Sylvia Loeb

POETA CONVIDADO - Sylvia Loeb

Sylvia, sempre bem vinda, mais duas vezes. GANGUE
Eles se reúnem todas as noites na esquina de minha casa. Preferem as noites de lua, frio ou calor, não importa, mas se animam mais no verão. Eu também. Fico olhando, com uma vontade danada de me enturmar, mas tenho medo, pois vêem para cima de mim, aos atropelos, não têm muito cuidado, até já me derrubaram. É tudo brincadeira - parece - brincadeira de gente jovem e pouco responsável, sei que não fazem por mal, mas me assusta. Chegam perto demais, ruídos estranhos, uns até chegam a encostar em mim. Outros mais ousados, não disfarçam, aspiram meu aroma. De vez em quando fico corajosa. Acontece alguma coisa que perco o medo, a aventura me chama, gosto que me cheirem, que se encostem em mim, que me mordam o pescoço, que saltem, me derrubem, ganindo e latindo. Quando fico assim, não me reconheço, entro na patota, na gangue, fico vadia. Sylvia Loeb 15/09/2008
CULPA É uma coisa que gruda, 
que não me deixa pensar, 
deve ser que está aí para isso mesmo, parar meu pensamento.
Quando ela me pega, me obriga, me prende é exigente é ciumenta. 
É como a melodia que não consigo parar de cantar, 
toma conta do pensamento, expulsa e apaga toda a música dentro de meu corpo, 
uma maldição, um vírus. 
O mesmo acontece com ela, se agarra em mim, 
me agarra e não me deixa pensar no que mais Eu Desejo. 
16/09/2008 Sylvia Loeb

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Cegueira


Fico cega sem ti. 
E se soubesses o medo que tenho da escuridão!
E o tanto que era iluminado meu olhar quando olhavas em mim.... 
Usei tua luz e tua energia roubei, como quem não tem aonde agarrar-se. 
Eu te quis tanto mas tive tanto medo... 
Gastei tua luz em fugas enquanto desprendido, me davas mais e mais. 
Foi o tanto que te quis que me cegou. 
Porque só cega não te buscarei em toda a parte 
Não te verei em todos os olhares 
Não te beijarei em todas as bocas. 
Fico cega sem ti. 
E tateio no escuro em busca de luz
22/09/2008

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Casamento

Um dia adormeceu no meio de um beijo.
Ele ficou chocado.
Procurou brincar com o assunto várias vezes,
contou aos amigos em tom de piada,
procurou rir de si mesmo.
Ela ficou sem jeito.
Não havia desculpa para isso.
Como dormir no meio de um beijo?
.
Um dia esqueceu-se de chamá-lo para almoçar.
A família toda na mesa, ele não.
Ele ficou perdido,
procurou entender porque havia acontecido,
comentou com os amigos em tom de piada,
procurou rir de si mesmo.
Ela ficou passada.
Como pudera esquecer-se dele?
.
Um dia teve que viajar sem ele.
Notou que sem ele era bem melhor.
Voltou alegre,cheia de histórias para contar.
Ele percebeu.
Ficou petrificado,
procurou entender o que estava errado,
conversou com amigos reservadamente.
Ela procurou disfarçar.
Detestou ter que fingir o que não sentia.
.
Um dia constatou que não o queria mais.
Ficou pasma.
Não sabia como dizer.
Ele percebeu,
procurou agradar, não conseguiu.
Ela conversou com os amigos reservadamente,
ele conversou com os amigos reservadamente,
os amigos conversaram entre si.
Ela criou coragem e falou.
Ele escutou o que já sabia.
.
Ela se foi
e ele ficou.
02/02/2007

domingo, 21 de setembro de 2008

Inspiração

Desde aquela tarde em que a visão do arco-íris viera juntar-se ao sentimento de felicidade que tomava proporções enormes, não conseguia definir exatamente o porque das sensações.
Talvez porque não estivesse pronta, ainda.
Lembrava-se de quando passara anos sem anotar nenhum acontecimento relevante. Mas o estranho é que não se apercebia da marca deixada por algum fato.
Parecia tudo muito distante.
Lembrava-se vagamente do sentimento de euforia que a tinha acompanhado durante bastante tempo. Mas não conseguia mais determinar quanto. Teria sido mais de um ano? Dois? Três? Não se lembrava.
Lembrava-se apenas daquele sentimento deliciosamente apaziguador mas não conseguia lembrar-se do porque.Talvez o importante fosse apenas o sentir. Talvez não importasse qual fato tivesse acarretado tal sensação.
Pensou que sem dúvida, o sentimento era mais importante do que qualquer fato.
Procurou focar o pensamento apenas nisso. A importância de sentir os sentimentos. Só isso importava.
Os fatos não tinham a menor importância.
Importava apenas o que restava depois que os acontecimentos se iam. Pois era isso o que realmente a acompanharia para sempre.
Apenas isso e nada além disso poderia lhe trazer inspiração.
06/11/2006

Cidade

Distante
Clarão
No escuro
Da noite
Longínquo
Rumor
Ao longe
Recorda
Felizes
Momentos
Alegres
Pessoas
Musica
Dança
Riso
Amizade
Sozinho
Reabro
Feridas
Curadas?
Pré-sinto
Tão forte
Buraco
Na alma
Re-sinto
Percebo
Que sinto
Saudade
Só-sinto
Que quero
Voltar
Pra cidade.
18/10/2006

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mulher

Me olha, me quer;
Me sorri, me enternece;
Me fala, bem manso;
Me leva, me enlevo;
Me acaricia, bem leve;
Me beija, aos poucos;
Me abraça, com força;
Sussurra, no ouvido;
Me convida, eu vou,
Mulher que sou.
28/02/2007

Desopilar

Hoje deixo as amarras, abraço as farras, abandono-me aos acontecimentos, aproveito os ventos.
Atendo ao telefone, aceito os convites, escuto palpites, envio mensagens, acato viagens.
Nada que aprofunde pensamento, nada que lembre tormento.
Nada de lamento.
Não quero decisões, comparações, pressões.
Quero o alegre, nada que apoquente, quero ser leve, falante, eloqüente.
Venham musica e dança, atiro-me ao mundo, vou leve, vou fácil, vou fundo.
E por mais que este sentimento não perdure, por mais que aconchego eu procure, não quero o que me pare e me breque, nada que me torture, me amarre ou me segure.
12/08/2008

Mãos

Lembro-me das mãos dele. Nunca as esqueci. Tão bonitas eram, teimam em voltar à minha mente. Quadradas na base, dedos alongados e retos, unhas bem desenhadas. Mãos firmes. Moviam-se com delicadeza e força. Ao falar, desenhava com elas movimentos no ar. Muitas vezes não escutei o que dizia. Apenas olhava o desenho de seus movimentos e sempre, bem me lembro, um arrepio percorria meu corpo. Queria segurá-las com força e mantê-las ao meu alcance. Há muito não fazem parte da minha vida mas lembro-me delas, como se as quisesse segurar independentemente do corpo ao qual pertencem e se as tivesse agora escolheria, para colocá-las, o corpo que melhor se adaptasse ao meu. Porém, desde que me encantei por aquelas mãos, nunca deixo de olhar as mãos de um homem. Algumas nada se parecem com as dele, outras não me encantam de maneira alguma. Há ainda as que são quadradas na base mas não possuem dedos firmes, ou as que até se parecem, mas não têm a mesma força. Se pudesse iria buscá-las e as colocaria, destacadas de tudo, uma com os dedos colocados delicadamente sobre a outra, imóveis em toda a sua beleza, junto a mim. 04/04/2007

O teu momento

Me dá esse momento.
Me dá.
Deixa que fique colado em mim.
Que jamais se perca em praias longínquas,
em mares revoltos,
em noites sozinhas,
em praças solitárias,
em viagens interplanetárias.
Deixa que grude com força
e que eu o carregue como um trunfo.
Para que me lembre sempre
que um dia foi teu
e que quem te deu,
fui eu.  
Tita
29/09/2006.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Gula

Sabia-se gulosa de encantamentos, 
de aprendizados 
e de profundos sentimentos! 
Até exagerava 
de tanto para si pegar, 
e muito mal passava 
só por se fartar. 
Mas havia uma só coisa 
que a fazia perder 
essa gula de viver: 
era quando alguém que ela queria 
gula dela não sentia.  

Tita
17/09/2008

Acostamento

Os dias serão cheios de sol e de surpresas.
Sorrisos serão constantes, caricias sempre presentes.
Nos momentos difíceis, haverá conforto;
nos momentos estranhos, olhares de cumplicidade.
Haverá passeios inesquecíveis,
viagens maravilhosamente infindáveis,
pores do sol assistidos no apoio de abraços fortes;
conversas tranqüilas e momentos sussurrados.
Haverá riso, olhares brilhantes;
aconchego no fim da noite, agradecimento ao nascer do dia.
Haverá companhia e a sensação ímpar do pertencer.
Haverá tranqüilidade e a certeza da continuidade.
Por enquanto, a vida corre como um carro veloz
enquanto,
com os olhos fixos no horizonte,
aguardo no acostamento.
10/09/2007

Vício

Perguntado, disse que não os tinha. Que mentira! Tinha muitos, que não percebia. E não percebia, porque não se via, pois o não perceber-se já era um, que sempre se repetia. 03/10/2007

terça-feira, 16 de setembro de 2008

José Francisco

Podia ser qualquer um este menino, José como todos os outros ou Francisco como alguns. Ao nascer, definiram juntar os dois. Decisão de mãe? Complicada tornou-se sua inteiração no mundo, sempre dividido, sempre um pouco José como todos, Francisco como alguns. Sem lugar definido, sem jamais se encaixar, colocando-se sempre aqui e ali, a viver intensamente José, ou ser um pouco Francisco, cada um tão definido que até doía, com seus sentimentos tão completos. Quando era José queria ser Francisco e, quando Francisco, que falta lhe fazia José! Não encontrou maneira de completar-se porque é sempre tão difícil juntar dois em um....porque me tornaram dois quando teria sido tão simples terem-me definido apenas um? Pergunta martelava sem trégua. Vai ver por isso tinha dois empregos, duas mulheres sem que uma soubesse da outra, uma verdade e sempre uma mentira, um querer e um negar, uma decisão sempre indecisa, duas vidas tão opostas. Vai ver... Um dia José e Francisco finalmente compreenderam: não, não tinham culpa alguma de ser José Francisco. A culpa, era da mãe. 16/09/2008

Rio

Eu nunca aprendi a ler o rio. Os barqueiros sabiam lê-lo e escutá-lo, a ponto de não encalhar os barcos nas praias cobertas pelas águas e nem raspar os cascos nas pedras que existiam aqui e ali.Tentei muitas vezes ler o que dizia. Mas a mim parece que não queria dizer nada. Para mim o rio estava mudo. Nada me contava.
Aqui e ali um peixe aparecia mas não havia mesmo como conversar.
Nas travessias eu olhava a água fixamente e jogava minhas perguntas, mas as respostas nunca vinham .
Porque só comigo o rio emudecia? Porque só a mim não dava as respostas?
.
_ Porque barqueiro, com você o rio conversa e comigo não? E porque eu, analfabeta de rio, não consigo ler? Me ensina barqueiro, me ensina por favor?
.
O barqueiro não sabia os porquês e disse que para mulher culta, não sabia ensinar. Nenhuma insistência fez com que mudasse de idéia.
Não, eu não sou culta. Culto só é quem sabe ler rios e eu nada sei. Eu passo meus dias escrevendo invenções. Fingindo entender sobre sentimentos, tentando adivinhar o que me cerca. Nem mesmo um pequeno córrego eu consigo decifrar. Não, eu nada sei.Vivo carregando minhas perguntas para todos os lados, procurando respostas. E quando me arrisco a algum palpite, erro demais. Não há rio que me entenda e nem barqueiro que queira me ensinar.
.
_ Ta bom barqueiro, não me ensina. Eu tenho mesmo dificuldade de aprender e, para ler o rio, de nada serve o que aprendi até hoje. Não me ensina mas me leva, barqueiro? Só me leva? Prometo nada perguntar.
.
Concorda. Vou com ele.
Enquanto navegamos rio acima e rio abaixo, o barqueiro, com sua voz macia, me embala, me cuida e lê o rio para mim.
09/11/2006

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Plenitude

Ah se a plenitude me tomasse
e me enlevasse
de leve qual alma,
a nas nuvens voar
Se me soltasse as amarras
e nem sabendo o que ata
rodopiasse no ar
feito baile de musica
a girar e girar e girar
Cabeça tonta nem pensa
nem se fixa
nem se doma
Se eu pudesse
viver cada momento
Se eu fosse
um eu que assim faz
Se eu fluísse
e me extinguisse...
Se o olhar brilhasse
num desmedido modo
Se eu me desse
que nem me precisasse
em outro lugar
O que me busca
não acha morada
o silencio esperado
não vem abraçar
a paz que me quero
não vem encontrar.
E então se eu fosse
e nem mais voltasse
se eu ficasse
e sublimasse
domasse de mim
o que quer me queimar,
Se eu pudesse,
Se eu fugisse,
partisse
esquecesse
Se eu fosse
Ah se eu,
se eu,
se eu....
19/06/2008

Trilha

Vejo-me desmatando a trilha de mato cerrado.
Todo dia mato denso caminho apertado.
Vez em quando um clarão sem espinhos, passa rápido.
Depois a volta à luta com o meu facão.
Facão na mão finjo-me sem medo
mas dentro bem sei, coração tremendo.
Trilha sem fim coube a mim.
17/03/2008

domingo, 14 de setembro de 2008

Ciclo

Estamos entre ciclos, nós dois. Sem saber o que fazer com os momentos completos que por vezes nos acolhem, com os afastamentos sem saudade que por vezes nos surpreendem. Estamos entre ciclos nós dois. A procura do que fazer com este hiato, este espaço de limbo que nos perturba e nos desloca de nosso próprio centro. Estamos entre ciclos nós dois. Agindo por tentativas, esperando que uma solução certeira nos pegue de assalto e que o futuro por si só nos decida e afaste a ansiedade que nos toma. Estamos entre ciclos nós dois. Sabendo que o que fomos, o que tivemos e pelo que passamos, Faz um desenho improvável ou até mesmo impossível, do depois. 03/09/2007

POETA CONVIDADO - Sylvia Loeb

Espaço de Sylvia, sempre aberto. PALAVRA É assim, ó Você inventa uma letra e depois pega outra, qualquer uma pode servir no começo Mas vai ter que tentar Por ensaio e erro, Assim ó, Pega uma letra, gruda na outra, mais uma e ainda outra, Aí fica de longe, Vê se ficou bonito, Aí deixa um espaço, e começa Tudo de novo, Vai tentando, Vai tentando À vezes dá uma preguiça! às vezes dá raiva, se assim for, ou jogue tudo fora, Ou comece tudo de novo Cigarro ajuda, olhar pra fora também, matar mosquito, às vezes ajuda A ter paciência para tentar juntar e dar espaço e formar alguma coisa Que as pessoas usam para chamar As coisas do mundo 29/08/2008

Ai!

Como dói, tão profundo tão triste, tão forte. Como dói, coração solitário, olhos cegos de ti, voz sem eco. Ai, Como dói, como dói. Rezo em vão, tira de mim a dor arranca fora o coração e, se preciso, minha vida tira. Leva com o rio que corre com o tempo que vai com os dias que acabam com minha alma que passa. Apaga, elimina, a lembrança, o sentimento isso! Tira esse tormento que resiste assim. Ai de mim, dor sem fim, Ai de mim! 15/02/07

No Escuro

Vem consumir meu todo, embrenhar-te em meus caminhos, enterrar-te em meus pedaços. Deixa-me afogar-me em teu perfume, devorar tuas palavras, envolver-me em caricias, inebriar-me em mãos macias. Dá-me teu afagar certeiro teus braços em ninho, tua presença enorme, teu necessitar de afeto. Dá, me dá, me toma! Me deixa te tomar, me esvazia, e me enche de plenitude, até a próxima vez. 11 de julho, 2000

sábado, 13 de setembro de 2008

Hotel


Há um hotel em uma cidade pequena aonde os sonhos acontecem. 
Lá, a portas fechadas, a ilusão toma forma concreta e o belo se instala com jeito de quem veio para ficar. As sensações se ampliam, o coração se esquenta e dispara, o correr da vida pára. 
Na pequena cidade, no quarto em que através da janela a vista alcança longe, os acontecimentos transcendem o mundano e os fatos se tornam explicáveis. 
Há um hotel em uma pequena cidade aonde o irreal toma forma e lá, apenas lá, todas as interrogações se fazem plausíveis. O pequeno se torna enorme, o inexistente se materializa, o riso aflora e as borboletas entram pela janela, sem medo de pousar. 
Há um hotel bem pequeno em uma cidade pequena que guarda um sentimento que, de tão grande, já não cabe na pequena cidade, no pequeno quarto, no pequeno hotel e então, sorrindo, agarra-se à asa da borboleta que pousa, foge pela janela e vai ver o mundo só para ter a alegria de voltar.

17/06/2008

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

ENIGMA

Dobrei a esquina e apertei o passo. Não sei o que há ali atrás daquelas paredes... Boa coisa não há de ser ... Fosse coisa boa haveria mais luz e não haveria tanto lixo pelo chão. Ai que arrepio! Esse lugar dá um medo danado! Eu é que não devia ter me metido nessa, agora já estou aqui e o negócio é ir em frente. Finjo que nem temo, mas estou com um medo de doer! Lembro-me de histórias de fantasmas, ai que arrepio... Por que será que eu decidi aceitar este convite? Que mania de correr atrás de novidade! Escutei um barulho, socorro, juro que escutei. Vou ficar aqui encostada na parede mas que medo, que parede fria danada que está me gelando toda e eu não consigo sair do lugar. Arre que minhas pernas estão tremendo! E aquele vulto lá longe? Mas por que não consigo me mover? Vou passo a passo, devagarzinho, assim, segurando na parede... A droga do celular nem sinal num lugar assim. Credo, que nojo! Piso em plásticos, latas, argh! Detesto coisas sujas. Mas que mania a minha de ir atrás do desconhecido, mas que mania essa minha de me meter nessas roubadas. Isso. Roubada! Das maiores. Número 132, finalmente. Cheguei. Nada de campainha, porta trancada. Bato palmas, bato na porta. Esmurro a porta, começo a gritar ei,ei!!!! Abre aí!!! Nada! Não tem ninguém. Olho no relógio. A hora está certa. Começo a ter medo de novo. Estou brava, muito brava e com muito medo!!!Saio correndo, volto para trás e finalmente de novo na rua conhecida. Tomo um taxi, entro em casa, tiro a roupa e me jogo na cama, coração ainda disparado. Cubro-me até o topo da cabeça. Por que será me chamou para ir lá? Por quê? Enigma! 12/09/2008

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

VOZ

Ficou gravada sua voz em mim.
Nas palavras sussurradas,
nos momentos de ternura,
no enlevo a que me conduzia,
nos caminhos mentais que comigo percorria.
Ficou gravada sua voz na dor
da falta nos momentos de distância,
do silenciar sem aviso,
do não explicar de acontecimentos,
do telefonema que não vinha,
do olhar que abandonava.
Ficou gravada e inda escuto
o sorriso a habitar seus poemas
o riso que me vem de sua imagem
o timbre alegre dos bons momentos
o gemido do seu e pelo meu prazer.
Ficou gravada, ficou gravada...
e a mim canta nas musicas de nós
alto me chama em meus momentos sós
falta me faz no caminhar dos dias
e no vácuo das noites vazias.
Gravada ficou sua voz perdida
no lugar que não mais nos cabe
no tempo que não mais nos acha
no carinho que não nos encontra
na paixão que não mais nos sabe.
Ficou gravada.
25/02/2008

Recibo

Fui embora, sem nada dizer. Afinal, o que havia para ser dito? A solidão da alma? O vazio do ventre? As mãos sem apoio, o ombro desamparado? Melhor calar. Não olhei para trás. Não titubeei. Do que ficou não há registro. O que dei perdeu-se. Não há comprovante ou recibo que possa atestar. 05/10/2007

Inteligência

Foi por uma questão de inteligência que ele definiu sabiamente os caminhos e ações para a conquista.
O interesse demonstrado nos primeiros encontros, as carícias sutis, a palavras doces, foram de uma inteligência cheia de sutilezasPor descobri-lo tão sutil e sedutoramente inteligente, ela se entregou e deixou que ele a conduzisse, inteligentemente.
Até que ele procurou, com inteligência, esconder suas primeiras mentiras e desvios de rota.
Ela, inteligentemente, não demonstrou que percebia e deixou que ele, por não percebê-la inteligente, abrisse a guarda.
Porém ela, inteligente, não queria alguém que usasse a inteligência para afastar-se dela e ele, foi inteligente o bastante para perceber que de nada adiantava querer refazer o que ficara para trás.
11/09/2007

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Proparoxítona

Nas coisas do coração sempre ia pelo caminho mais difícil. Havia tantas nuances que não saberia tomar um só caminho. Embalava-se nas palavras escutadas, nos fundos musicais, nas curvas dos caminhos e perdia-se na luz dos olhares, no toque das peles e na profundidade dos abraços. Nas coisas do coração as lembranças de caminhos estáticos e definidos lhe recordavam tropeços dolorosos e talvez por isto procurasse a permanente indefinição. Talvez por isto teimasse em colocar-se nas encruzilhadas que apontavam setas luminosas em todas as direções. Permanecia na rotatória, girando em falso. Nas coisas do coração não evitava detalhes e não poupava rodopios e curvas que nunca apontavam o porto seguro. Nas coisas do coração não resumia descrições e talvez por isto nunca usasse palavras simples. Procurava inúmeras possibilidades, sonhava o que não havia, especificava demais. Nas coisas do coração era, sempre e inevitavelmente, proparoxítona.
10/09/2008

Ancas

Vesti-me de luzes, insinuei-me com a brisa, entreguei meu pensamento à musica e desnudei-me ao calor do sol. Ao som de arpejos doces beijei o esperado beijo. Subi ao arco-íris e na descida, entreguei-me ao guia, como quem não enxerga mas vê. Deixei que me levasse a sussurrar-me confidências ao longo caminho. Ao adormecer, pedi que em minhas ancas pousasse as mãos, como quem acha morada para o descanso merecido. 16/06/2008

Mansarda

Olhei para o sol forte e foi então que me dei conta de como era alta aquela casa. Quantos andares, quantos espaços...Quantas pessoas morariam ali? Então eu soube: uma só. Senhora de cabelos brancos, solitária, abre a janela todos os dias para deixar o sol entrar. Dizem que escuta musica alto e que ao passar frente à casa as pessoas se detêm porque é musica de bom gosto. Alguns a vêm dançar pela janela entreaberta e então a imaginam muito mais nova do que realmente é.
Espírito jovem, dizem. Contou-me o jornaleiro que gosta de cantar e que algumas vezes, recebe um senhor idoso e bem vestido para jantar. Nestes dias a casa se movimenta e pode-se escutar o tilintar de cristais. A floricultura entrega flores, o açougue trás a carne (sempre carne de caça) e no dia seguinte pode-se ver latinhas de foie grass e garrafas de Carmenère na lata de lixo. Detenho-me frente à casa e me imagino em seu interior.
Dançaria como ela pelos salões vazios?
Receberia o senhor idoso?
Os netos?
Seria eu minha própria companhia feliz na casa enorme? De novo ergo meu olhar até a mansarda. Seria ali, sem duvida, o lugar meu, escolhido dentre todos os cômodos, para escrever meus pedaços.
Então perco meu olhar no caimento do telhado, o inferior (quase vertical) e o superior (quase horizontal), e acompanho a descida da parede até que a vejo, com seus cabelos brancos e um sorriso nos lábios a me olhar fixamente através da pequena janela aberta sobre o telhado. 09/09/2008

terça-feira, 9 de setembro de 2008

POETA CONVIDADO - Gabriela Ramos Rosa

Esta é a Gabi. Garota profunda, intensa, tanto na tristeza quanto na alegria que no momento a toma toda. Nada melhor do que ver a Gabi feliz. Companheira de trabalho, de almoços, de conversas de guardar segredos (ninguem como Gabi para guardar segredos) e da palavra do fim do dia que, no dia a dia, teimamos em escrever. Segue a Mansarda de Gabriela que por ser dela, é compleamente diferente da minha MANSARDA “Tots tenim um secret tancat amb clau en l’àtic de l’ánima” * Lá, na mansarda que erigimos por dentro. Há coisas nossas que de tão nossas ninguém alcança. E devem ser deixadas assim – inalcançáveis, nossas. Porque segredos, porque entranhas e porque nossas. E ainda que trancadas, empoeiradas, esquecidas no ponto inatingível; as que nos reviram e decifram. A porta que se fecha a sete chaves para os de fora é a que se deve escancarar se quisermos nos conhecer. Gabriela * Todos têm um segredo trancado a chave no ático da alma. 09/09/2008

Dualidade

Convivemos bem as duas, em nós.
Sabemos quando nos tornar
da falante à caladona,
da apaixonada à descrente,
da que tem medo à que sempre vai.
Nos divertimos juntas,
nos atiçamos, nos irritamos e brigamos,
nos empurramos quando necessário
e sofremos quando nos perdemos.
Às vezes rimos, uma da outra,
num movimento de vai e vem
ou até choramos,
porque nos convém.
Sou aquela que vira a outra
e volta a ela quando quer calar.
Sabemos que nos queremos
e juntas, a nos deixar ficar,
formamos o todo
que se enternece e fortifica
a cada movimento,
em cada momento,
na loucura ou na paz.
12/06/2008

POETA CONVIDADO - Mariangela Almeida

Mari é amiga de todos os dias e horas. É aquela que está lá quando você precisa, é a que vem porque sabe que se está precisado. É também a jornalista inteligente, companheira da palavra diária a ser escrita, a que escreve bonito. Hoje, Mari é minha convidada aqui. CREPÚSCULO Momento de meia luz, metade escuridão. O que se foi dando lugar ao que se aproxima, sem pressa. Vontade de sossegar e fechar os olhos frente ao futuro sem contemplar cenários nem pensar em revanches vãs. Choro contido, corpo largado no canto do sofá empoeirado, enquanto a dor passa, como se por lentes de aumento. É meu crepúsculo, depois da decepção rompida, dando-me tempo para me reinventar, criando formas para as forças que não tenho. Amanhã sei que na boca trarei o amargo da tristeza e no peito, cansado que está, a disritmia do fracasso. Talvez, em outro entardecer, eu me sinta mais fortalecida. Porque hoje não quero empunhar a lança guerreira, nem usar a capa de invencível heroína. Hoje quero apenas desfalecer-me humanamente deixando a parte ferida morrer, pouco que seja, para não me sentir assim. Assim, não mais... Mari, 08/09/2008

Sabado

Minha cabeça voa longe, há tanto a fazer e tão pouco tempo, a mesa cheia de coisas, a organizar, aonde está aquela eu que nunca se perdia? Leio sem prestar atenção, escrevo sem verificar os erros, cozinho extrapolando nos temperos. Vou e quando chego não me lembro a que fui, volto e não sei porque voltei. Retorço fatos, invento histórias, vivo vida ilusória, choro e rio por qualquer coisa. Penso que tenho fome mas esqueço-me de comer, tenho sede e com o copo na mão, bebo só um pequeno gole. Estranha sensação me toma o ventre, num repente... Não me lembro aonde coloquei as chaves e o que tenho que fazer ainda hoje, muito menos amanhã. Escrevo palavras sem nexo, constato uma mancha nova em uma das mãos, fico horas no banho, compro qualquer coisa nova, pelo prazer de comprar. Sorrio para pessoas na rua, aceno do carro, cumprimento no elevador, converso com os vizinhos. Telefono e não me lembro o que queria dizer. Toma-me, vez em quando, uma certa mudez... Num repente retomo todas as rédeas, procuro colocar ordem nas coisas e nos pensamentos mas a ordem me contorce e me aflige e então jogo as rédeas, melhor sem, deixo que se percam pelo chão, quem precisa de rédeas? Essa bobagem da voz da razão que quer avisar alguma coisa que não quero escutar. Mesmo porque de que servem as razões sem as certezas? Troco de roupa correndo, encontro os amigos, não acho parada, volto para casa e não encontro o que ler. Olho-me no espelho e constato: meus olhos brilham e aparento (não sei como) um certo sossego, enquanto sábado não vem. 11/06/2008

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Flamboyants

criação: Tita
Música: Danny Boy (Elvis Presley)
Quando estive lá pela última vez, os flamboyants estavam floridos. 
Lembro-me de quando foram plantados, um a um. 
Fazia sempre muito calor, e era como se uma névoa quente cobrisse tudo. 
Uma névoa formada de sol. 
O ar que tremia enquanto o calor passava. 
Eu gostava de andar pela estrada, sozinha. 
Imaginando a vida lá longe,
escutando o silencio e criando cenas na minha cabeça. 
Minha cabeça cria cenas. De todos os tipos. 
Chego a acreditar tanto nas cenas que crio que algumas vezes me emociono, 
choro ou me alegro com as cenas criadas. 
Minha cabeça cria imagens tanto em preto e branco como em cores. 
Filmes. 
Algumas vezes sem som. 
Os atores são vários, a depender da cena mas há uma coisa em comum:
estou sempre lá.
Assisto sempre às cenas em que atuo. 
Persigo-me, perfeccionista, detalhista, implicante, implacável; 
repassando ato após ato. 
Sou meu próprio algoz, meu próprio ditador, meu próprio olhar ferino. 
Nada mais perfeito do que sê-lo em uma estrada solitária, 
num local quente e distante. 
Foram muitas as cenas. 
A ultima a que assisti, naquela estrada, é inesquecível. 
Foi a cena em que finalmente compreendi que a minha presença ali, 
tendo ao fundo o cenário dos flamboyants floridos,
não fazia nenhum sentido.  
Tita - 31 de agosto de 2006.

Corredor sem Portas

Colhi-te, pequena e frágil,
quando florias.
Em meu colo acariciei tuas pétalas e
levei-te comigo a te mostrar a todos.
Cobri-te de beijos e te cuidei,
flor em forma de alma.
Um dia ante meus olhos pasmos,
perdeste uma a uma, tuas lindas pétalas.
Enquanto caiam, senti minha a tua dor
ao te despires de tuas vaidades
e corri a pegá-las do chão procurando,
em desespero,
colocá-las de volta em ti.
Inútil.
Tu te fostes,
deixando em mim a tua fragilidade.
Hoje caminho a chamar por ti e
ao final do corredor sem portas,
teu vulto pequeno se faz enorme.
07/06/2008

Prêmio

Chega embrulhado para presente. Agitada, corro para abrir. Porém, as amarras são muito fortes, não consigo sem ajuda.
Chamo alto, por favor ajudem, preciso abrir este premio, pois que é meu! Ganhei!Agitada aguardo os amigos que correm, curiosos. Trazem tesoura, faca, estilete. Cortamos daqui e dali, arrancamos os papéis, alegria por todos os lados.
Mas porque foi o premio?
Também não sei. Chegou, assim, vindo não se sabe de onde!
Ainda uma caixa dentro da caixa, mais papel, amarras que se cortam, ansiedade.
Não pode ser. Se ganhou tem que saber porque. Como ganha e não sabe?
Mas não sei! Procuro lembrar...
Na verdade tenho feito de tudo para ganhar algum.Tenho procurado melhorar desde o mais íntimo de mim. Tenho procurado não ferir, não destratar, tenho procurado ajudar, trabalhar bem, aprimorar. Tenho procurado esmero em cada relação, em cada obrigação, em cada pequena coisa. Tenho procurado tanto! Decerto mereço. Por isto ganhei.
Eu sei, digo. Ganhei porque mereço! E nada mais.
Enfim chegamos à ultima caixa. Papel de seda, seguro com cuidado e desembrulho devagar. Cuidado, frágil.
É lindo! Ficamos em silêncio, meu coração transborda.
Este prêmio é meu! É o primeiro que recebo, eu me emociono.
Aonde vamos colocar? Na estante? Na mesinha? Naquele móvel ali?
Coloco na estante. Olhamos. Ficou lindo! Então num repente, sem golpe de ar, sem que ninguém o toque, desmancha-se diante de todos nós.
Transforma-se em pó.
Olhamo-nos.
Nada dizem, nada digo. Sabemos.
Não foi desta vez. Esse premio, ainda não mereci.
03/06/2008

domingo, 7 de setembro de 2008

Equilíbrio

Tirou os pés do chão e abraçou as pernas junto ao corpo, sentada na cadeira de balanço.
Não sairia dali. Ficou a balançar, olhar sem ver.
Mundo facilitado aquele do sem pés no chão.
Se dali não saísse não precisaria ir ou vir, ou nem mesmo decidir se iria.
Cansaço tomou conta.
Lembrou-se de momentos e das crateras que se abriram quando palavras sacudiram tudo. Abraçou os joelhos com mais força.
Em auto-abraço, equilibrou-se na cadeira, como podia.
E chorou.
Como poderia entender o porque?
Gritou o grito interno.
E ali ficou, abraçando-se pelos joelhos.
02/06/2008

sábado, 6 de setembro de 2008

Dois

Deixa que mingue o desejo em mim
que de só recolher-se fugindo vai
que se transforme em plácida calma
sem espera,
sem cena de roupa que cai.
Deixa que se vá se permanecer não se espera
pois de dança de tudo o momento já foi
e o espaço que vem é de campo e quimera
a cuidar com afeto o momento depois.
Deixa que vá que em mim não se fixe
pois que então seja leve este momento a dois.

Tita - Amanhecer, 01/06/2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

TENDÊNCIA

Finjo que não aconteceu. Deixo que passe, que se apague, que empalideça, que adormeça, que perca as cores e os matizes. Não presto atenção quando escutar o assunto e não escrevo sobre ele. Não marco a data, não relembro detalhes. Deixo que as dores se esvaiam e que as lembranças não se fixem. Assim, protegida, sigo carregando minhas armaduras e armas. Se atiçada, entro em guarda e afasto insinuações. Se questionada, nego lembrança. A cada vez que o fato teima em me assaltar a mente, afasto possibilidades de análise ou revisão. Visto a fantasia e vou dançar Tendência ao sofrimento? Eu não. O que já foi não volta, O que não tem remédio, remediado está. 05/09/2008

POEMA ROUBADO - Zédu

Como ladra que sempre fui, das belezas de Zédu, roubei.
ESCRITURA
De repente, te vi querida amiga distante.
Tão dentro de mim, tão impossível instante,
tão eu já não mais de ti,
breve começo que já chegava ao fim.
E foi na alegria por ti sentida
que me descobri assim de partida.
Nos sorrisos do dia, restos em minha imaginação,
no teu rosto a sonhada alegria,
a inevitável comemoração.
Pizza, família, folia.
Lá eu não estava, nem poderia.
E só me restava dar algumas palavras frias
deste calor primeiro que me invadiu,
deste novo gostar que vou descobrindo dos véus amorosos,
dos dias gostosos em que você não fugiu - e foram tão poucos -
de meu coração repartindo,
do mudo que ficou rouco,
da ida agora sem volta,
da volta para detrás da porta.
E a palavra entristecida que não podia ser dita,
que não cabia no dia, que não deveria,
criou raízes em mim.
E fiquei, alegre e triste, assim.
Como quem já não insiste
e troca o sonho pelo que não existe.

02 de setembro de 2008
Zédu http://zedupoca.blogspot.com/

POETA CONVIDADO - Sylvia Loeb

Sylvia passa a ser constante por aqui. É que seus escritos encantam.







SOLUÇO
Devagar a nuvem cinza pousa sobre minha cabeça,
 partículas de vapor penetram em meus olhos, narinas e boca.
Invadem lentamente a caixa pousada acima de meus ombros e passeiam pelos espaços vazios.
Algumas descem pelo interior do corpo,
E se alojam no alto do peito pertinho da garganta.
Forma-se um redemoinho, vagaroso no início, pouco a pouco pega velocidade,
e projeta-se para fora, causando solavanco e susto.
 O soluço cai no chão. 
Sylvia 03/09/2008