sábado, 28 de fevereiro de 2009

Mão

Deixe-me ver sua mão. Que bonita é. Gosto de mãos assim, firmes, como as suas. Como é macia! Dá vontade de acariciar... Deixe-me ver as linhas, sulcadas como são. Vida longa e forte, destino bem traçado, quantas coisas posso imaginar olhando as linhas da sua mão... Deixe-me segurá-las mais um pouco, só isso. Você se incomoda? É que estou sentindo a maciez. Nada digo mas penso no que seria sentir suas mãos roçando meu corpo, cada canto, cada nuance, minhas curvas, minha nuca, suas mãos me segurando forte, exigindo meu corpo colado no seu. O que terão sentido os corpos que sua mão acariciou? Como eram suas mãos, antes de mim? Se você pergunta digo que estou só olhando as linhas e não estou pensando em nada. Mas nem olho para você porque sem duvida meus olhos diriam o que vai dentro de mim. Minha mão está suando melhor você não perceber, na verdade, você nem sabe que nessas horas minha mão sua, meu corpo treme e é quando sei que outra pele combinou com a minha pele. Mas como você me conhece pouco! De qualquer maneira vou acariciar sua mão só com a ponta dos dedos. Na verdade o que eu queria era que você me arrebatasse e com suas mãos me abraçasse forte e me acariciasse o corpo todo, com um abraço todo, com seu corpo todo e fizesse de nós dois um todo, o tempo todo. Mas nada digo. Isso, acaricie a minha cabeça, passe as mãos assim suaves pelo meu cabelo. Fico quieta, não penso no seu arroubo que não vem. Isso, não pare. Aos poucos, adormeço. 28/02/09

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Grampo

Eu, com os grampos, grampeio o que for grampeável.
Organizo, separo contas com o mesmo nome, agrupo despesas iguais e grampeio.
Recorto artigos que quero reler mas, se forem do tamanho de uma folha de jornal, corto em tamanhos menores e grampeio.
Para isto me servem meus grampos.
Soube que há quem use grampos para torturar.
Conheci quem usasse para remendar roupas, muito estranho!
São tantos usos que já soube fazerem dos grampos...
Quanto a ele, não consegui convencê-lo a usá-los do modo que considero correto.
Teima em grampear sentimentos dois a dois, insiste no grampear de lágrimas e há quem diga que o que quer mesmo (pasmem!),
é grampear almas. 26/02/09

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Indignação

Diga tudo sempre.
Cale nunca calmo.
Sereno fique não.
Expresse raiva sim.
Aguente o errado nunca.
Esbraveje alto sim.
Grite forte sempre.
Suporte o indigno não.
Aponte indigna ação.
Injustiça diga não.
28/05/07
Tudo a ver:
"INSUPORTAVEL: O sentimento de um acumulo dos sofrimentos amorosos explode no grito:"Isso não pode continuar."
Roland Barthes em "Fragmentos de um discurso amoroso"

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Incompletude

Juntos desbravaram madrugadas, caminhando no frio.
O ar gelado os percorria e gelava os narizes, quando então não sentiam os narizes, mas os coraçoes ficavam sempre mais e mais quentes.
Porem o mundo nao lhes reservou muitas noites como aquelas em que conheceram a comunhão total de ideias,esperanças e corpos.
A vida nao lhes reservou sentimentos de paz completos como aqueles e nem lhes mostrou comunhão maior do que a que tiveram.
O futuro nao se mostrou nunca tao instigante e cheio de projetos e por mais que desejassem nao tiveram reprise daqueles acontecimentos.
Por isso se pensavam e se lembravam o tempo todo,
o tempo todo.
23/02/2009

Mistura

Está ao meu lado. Aonde eu vou, vai também. Há tempos que não havia alguém que andasse ao meu lado desta maneira. Se estou gostando disso? Não sei definir. Ele gosta de dormir cedo e eu gosto de dormir tarde. Não lê e eu leio muito. Gosta de abacate e eu gosto de abacaxi... Na verdade essas coisas não importam muito. Vai ver o importante é que ele esteja ali. Dá um certo status. Mostra que sou desejada e desejável. Algumas vezes acho estranha a maneira como ele pisca o olho; como se de repente começasse a piscar e disparasse piscando intermitentemente. Mais estranho ainda quando o ritmo das piscadas começa a diminuir e a falhar, ora em um olho, ora noutro. Demora um pouco para voltar ao normal. Eu, pisco apenas uma vez. Outra coisa: os cabelos dele são espetados, bem retos para cima. Ele bem tenta deitá-los mas não consegue. Teimam em levantar-se. Acho que ele fica nervoso com isso porque bate a mão na cabeça a todo o momento. Às vezes bate com muita força e solta um gritinho de dor. Eu tenho os cabelos lisos e não bato na minha cabeça. Ah! Antes de dormir ele gargareja. Mas não é um simples gargarejar. Coloca água com sal na boca e sai caminhando pela casa toda, gargarejando em todos os tons. Acho que acha isso engraçado. Eu, não gargarejo e não acho engraçado. E quando faz todas essas coisas ao mesmo tempo? Sai pela casa gargarejando, piscando e batendo na cabeça? Até hoje não percebi se ele gostaria que eu achasse graça ou se isso é o normal. Eu me escondo atrás do livro. Mas há uma coisa que é a mais interessante de todas: ele é baixo, muito baixo. Para andar de mãos dadas com ele eu costumo dobrar um pouco os meus joelhos (na verdade eu também entorto um pouco o corpo para o lado em que ele está). Se eu me importo? Não sei definir. Desfilo com ele em todos os meios, finjo que não vejo o que não gosto, e até hoje não sei o que, nele, eu gosto. Na verdade essas coisas não importam muito. Vai ver o importante é que ele esteja ali. Dá um certo status. Mostra que sou desejada e desejável. Então, com ele me misturo, assim como quem não está percebendo nada. Se gosto da mistura? Sinceramente? Não sei definir. 01/02/07

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Pingente

Ficavam ali o corpo nu, os olhos nus e a alma, descarada, a desnudar-se em esforço constante de se fazer notar.
Ficava ali a vida como um livro aberto, mostrando os detalhes da personalidade imperfeita, o reconhecimento constante da incompetencia.
Ficava ali, a mostrar-se para que vissem os olhos cegos, que não viam.
E entao tomava-lhe a tristeza dos desentendimentos que teimavam em ali ficar
pingentes pendentes pungentes sempre presentes,
a distorcer a beleza dos sentimentos e da vida 
que sem compartilhar-se fica desvalida,
sem nexo, perdida.

22/02/09

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Eclusa

Nossa, como você é louco! Olhou para os lados, para trás, não havia ninguém. Era ele mesmo... E quem dissera aquilo? Tinha certeza de que escutara... Nossa, como você é louco! Interessante é que não se sentia tão louco assim (se bem que algumas vezes chegara a duvidar da própria sanidade, mas há tempos não acontecia nada muito fora do comum). Nossa, como você é louco! Deu de ombros. Se era louco, melhor assim. Ruim seria não carregar em si nem um pouco de loucura. Aquelas pessoas, tremendamente previdentes, sabe como é? Uma daquelas não queria ser. Aceitava a loucura como um bem. De qualquer maneira estava estranhando aquela voz que não sabia de onde vinha e que, não tinha duvidas, dirigia-se a ele. Nossa, como você é louco! Esta bem, sou louco. E daí? Por isto posso escrever o que se passa pela minha cabeça, posso falar qualquer pensamento, posso ter atitudes estranhas, posso ser ou não ser, fazer ou não fazer, sei lá, eu posso qualquer coisa quando posso ser louco. Sou mesmo. E daí? Nossa, como você é louco! Nossa digo eu! Quer parar com isso? Começou a andar depressa mas a voz não parava de repetir a mesma frase, você é louco, você é louco, você é loucccccccccooooooooooooooo. Foi quando encontrou um compartimento estranho no meio daquela ponte. Entrou, fugindo da voz, mãos nos ouvidos, fechou as duas portas hermeticamente e sentiu-se sob pressão de ar...em um vácuo. Aonde estaria? Encolheu-se, acho que vou ficar bem aqui e fechou os olhos. Acordou em um susto, nossa como você é louco, como você é louco, como você é louco!!!!!!!! Quis correr. Tentou abrir as portas mas não conseguiu. Socorro! Socorro! E a voz repetindo nossa, como você é louco!!!!! Com as mãos nos ouvidos gritou, gritou alto e forte. Nossa!! Como eu sou louco!!!! 19/02/2009 Tudo a ver "A realidade não passa de uma tradução redutora da enormidade do mundo, e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem" Rosa Montero em "A louca da casa"

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Encabulada

foto: Maíra Soares

 Não tinha medo de nada e com nada se detinha. 
Atirada, saia sempre na frente, falava o que lhe passasse pela cabeça, conversava com quem cruzasse seu caminho, contava casos, ria alto. 
Mas quando ele aparecia, que mudança! 
Que timidez, que coração disparado, que aflição sentia! 
O rubor tomava conta, as mãos tremiam e emudecia, sem coragem de levantar os olhos. 
Quando ele aparecia dava-se conta de quanto o mundo estivera cinza sem ele. 
Então pensava em festa, em fogos de artifício, em musica alta, em rodopios e risadas. 
Pensava em pegá-lo pela mão em lhe contar suas historias, em escutar o que dissesse, em acarinhá-lo, mimá-lo, abraçá-lo, niná-lo. 
Pensava em ficar ao seu lado, velar seu sono, acordá-lo com musica e beijos, e olhá-lo, cada detalhe, cada gesto, cada sorriso.
Pensava. 
Mas quando ele aparecia, olhava o chão encabulada, nada demonstrava e nada dizia. 
E então ele se ia pensando em pegá-la pela mão, em lhe contar histórias, em acarinhá-la, mimá-la e olhá-la, cada detalhe, cada sorriso....
17/02/09

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Complô

Há vezes em que o universo conspira contra. Parece de propósito, parece mentira, parece complô.
Nessas horas tudo o que se diz adquire sentido oposto, tudo o que se quer transforma-se no não querido, tudo o que se deseja volta trocado. O universo trapaceia, brinca de nos fazer de bobos, dá rasteira, e ainda ri da nossa fúria. Então é preciso ter coragem encarar de frente, agüentar o tranco e desfazer os nós. Porém o mais difícil é que nós são compostos de dois barbantes e sempre há um que teima em não se querer desatar.
16/02/2009

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ranking

Não sei o que é que nos coloca na competição para o ranking da vida. Não sei se é nossa força, nossos sonhos, nossa perseverança ou nossa temeridade. Galgamos, caminhamos, descemos, subimos e por vezes alguns alcançam os primeiros lugares. Poucas vezes estive entre as primeiras colocações. O que me pergunto é porque não consegui manter-me no pódio. 27/06/08

Mentira

Meu coração dispara,
de tanto não disparar.
Meu coração desanda,
de tanto querer amar.
E se engana, inventa história,
apaixona-se num repente,
entrega-se sem memória.
Depois se encolhe.
Medroso de si, meu coração se recolhe.
E fico a cismar
se porque quer é que se atira,
ou se é tudo mentira.
3/07/08

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Ribeirinha

Tinha personalidade forte.
Quando menos se esperava, brilhava, em toda a sua simplicidade e pouca instrução.
Alta, magra, negra, com um turbante feito de fraldas enrolado na cabeça, sorria seu sorriso sem dentes e contava o que já havia feito na vida. Corajosa, saíra sozinha pelo mundo procurando salvar-se de uma doença grave. E conseguira.
Dizia: eu não sabia aonde era mas “peitei” e cheguei la.
Com ela passei horas conversando em banquinhos feitos de tronco de árvore fixados no chão de areia branca.
Na casa dela tomei café em xícara de lata, comi frango em prato de ferro.
Juntas fomos muitas vezes até a praia do rio e, enquanto lavava roupa, eu nadava, seguindo suas instruções de como não pisar em uma arraia.
Fins de tarde, fixávamos os olhos no sol que se punha, nos botos que se retiravam em bando, nas canoas que, sendo remadas, voltavam para casa. Nessas horas ficávamos em silêncio, fumando nossos cigarros de fumo de corda (que ela me ensinou a preparar).
Com ela aprendi que o importante é ter coragem e que ser feliz é fazer bem feito as pequenas coisas e olhar os animais que crescem, as flores que nascem e as panelas que brilham nas prateleiras fixadas na parede de barro.
Lembro-me dela como quem se lembra de caminhantes que, firmes, não se cansam de ir em frente.
Lembro-me dela quando vejo os rios e deixo que minha mente corra até a areia branca e veja seus olhos alegres ao ensaboar a roupa.
Lembro-me dela a cada vez que ergo o corpo, olho em frente e digo:
“peitei” e consegui!
16/07/08

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Sombra

Aprendera a proteger-se desde cedo, medrosa que era.
Porém, mais do que medrosa era carente e as proteções lhe faziam bem. Assim, escondia-se nas cobertas, trancava as portas, nunca se colocava como primeira da fila, sentava-se no banco de trás dos carros, não carregava guarda-chuva para poder andar na carona dos outros de braço dado, dava passagem ao entrar em qualquer lugar para não se expor entrando em primeiro lugar, fazia que não tinha entendido para que ao ajudá-la lhe fizessem companhia, encolhia-se para caber em elevadores cheios de gente. Mas mais do que tudo, não saia sozinha de casa se não fizesse sol pois, quando na rua, andava sempre de encontro ao sol para fazer-se acompanhar de sua própria sombra.
11/02/09

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Insinuante

Costumava insinuar-se. Principalmente quando lhe subia pelo corpo aquele calor que a fazia pensar na entrega, naquela vontade de imiscuir-se, no abraçar o desejado abraço, nas mãos deslizando pelo corpo dele e o deslizar das mãos dele no corpo dela, nas vontades sussurradas, no riso alegre, no beijar o beijo da boca que beijava numa mistura de não querer nunca parar o beijo dos dois. Costumava insinuar-se. E sempre e muito quando bebiam um pouco, sempre conversando sobre o passado de cada um e sobre as idéias e o futuro que teriam juntos e sobre os desejos que tinham, as mãos agarradas, os pés entrelaçados embaixo da mesa, os olhos um no outro e cada demonstrar dela originava o mostrar dele da vontade que tinham de nunca acabar aquele amor que sentiam os dois. Costumava insinuar-se. Inda mais quando o sol e a água salgada esquentavam seu corpo e o barulho do mar despertava todos os seus sentidos e sabia dele ali ao seu lado sabendo a sal, e sabia que a cada movimento seu viria um dele sempre completando o que ela começava e sempre querendo que começasse o que fosse e de qualquer maneira, sempre ele sabendo a ele mesmo renovado da mistura dos dois. Costumava insinuar-se. Costumava. 11/02/09

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

PANE

Acho que o motor pifou. Provavelmente foi isso, não sei como dizer. Começou com um cansaço, sensação de repetir os dias, acordar na mesma hora, o mesmo caminho...Quando percebi fazia o caminho sem raciocinar, e quando chegava ao destino levava um susto. Como se o carro fosse sozinho, coisa estranha. Ao chegar movimentos iguais diariamente, guardar a bolsa, colocar óculos e celular sobre a mesa, ligar computador, buscar água enquanto e-mails baixam, sentar com o corpo reto para não ficar com dor nas costas, tomar água a cada uma hora, atender telefones falando meu nome, responder e-mails e não deixar nenhum assunto para depois, ler e-mails pessoais, não demorar muito tempo com coisas pessoais, cafezinho no meio da manhã, almoço com as mesmas pessoas na mesma hora...Sem contar o e-mail particular para ele, por que mando sempre na mesma hora? Se não responder o dele ele acha que não estou me importando e mais tantas coisas, tantas coisas que se for descrever até o fim do dia acabo constatando coisa pior do que já constatei. Resolvi parar de repetir: não colocaria a bolsa no mesmo lugar, não faria o mesmo caminho e mais não a tudo o que se seguia na lista de constatações. Mas foi quando saí de casa que o imprevisto aconteceu. Não consegui colocar o pé no acelerador. Fiquei parada na porta da garagem, imóvel. Procurei conter meus pensamentos mas foi impossível. Pane, terror, tristeza profunda. De qualquer maneira o caminho seria sempre o mesmo e o computador teria de ser ligado e os e-mails lidos e o trabalho realizado e todo o resto, todo o resto e o resto todo que se repetiria, sempre. Respirei fundo e fui em frente, como se passo a passo, como se com a pressão baixa, como se em esforço supremo. Mas fui, secando as lágrimas uma a uma. 9/02/09
Tudo a ver: "estou num quarto só
num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas
a arder num quarto só"
Antonio Ramos Rosa em "Poema dum funcionário cansado"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Planilha

Não fazia nada sem consultar a planilha. Perguntei: o que tanto tem aí que você não para de consultar? Disfarçou. Perguntei: são contas? Respondeu que preferia não comentar o assunto. Foi aí que fiquei curiosa: o que haveria ali? Por que não queria que eu visse? Perguntei: Por que não quer que eu veja? Respondeu que não havia motivo algum, apenas eram coisas dele, só dele. Enlouqueci. Saber o que havia ali tornou-se questão de vida ou morte. Não consegui mais falar de outro assunto: por que não podia ver? Que segredo era aquele? Seria segredo de trabalho ou da vida pessoal? É sobre alguma mulher? Você tem outra? Você não confia em mim? Riu: deixe de ser boba, não é nada importante. Piorou. Se não era importante por que não poderia mostrar? Entrei em desespero. Não dormi. Deve estar acontecendo algo muito sério, ele sempre me mostrou tudo. Acordei pedindo por favor, me deixa ver! Irritou-se: para com isso, você já está exagerando, assim já está demais! Chorei. Não acreditou quando me viu chorando. Entristeci, lágrimas escorrendo, incontroláveis. Abraçou-me: mas por que você quer tanto ver? Expliquei que me parecia uma questão de confiança, que eu era desconfiada, que era insegura, que estava me sentindo péssima. Então ele disse: Tá bom, pode ir lá e olhar o que quiser. Corri. Vi. Não era realmente nada demais. Coisa sem graça, sem motivo, simples. Ele riu, abraçou-me carinhoso. Minha aflição passou. Relaxei. Sorri, dei-lhe um beijo, agradeci. Então pensei: ainda bem que ele nem sabe que eu tenho uma, porque a minha nunca vou mostrar! 05/02/2009 Tudo a ver "Se eu pudesse trincar a terra toda E sentir-lhe um paladar, E se a terra fosse uma cousa para trincar Seria mais feliz um momento... Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural..." Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) em "Se eu pudesse trincar a terra toda"

Crédito


Disse que me queria. (Diante das circunstancias achei tão improvável!) 
Confessou-se arrependido do que dissera. (Dissera com tanta convicção, desconfiei.) 
Mostrou-se solicito, carinhoso. (Será que conseguiria manter-se assim?) 
Beijou-me com volúpia, ousou caricias diferentes. (Bem ele? Achei difícil de acreditar.) 
Sussurrou paixão e amor eterno. 
Calei-me porque na verdade, não dei o mínimo crédito!
04/02/2009

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Caracol

Gostava de enrolar-se em si mesma. Ia abraçando as pernas, encolhendo os músculos, enrolando o corpo, feito caracol. A cada voltinha perguntava-se se estaria ficando pequena o bastante, redonda o bastante. Quando criança vira uma minhoca enrolada assim feito caracol, morta, durinha, podia ser girada como se fosse uma moeda.
Se ficasse bem pequena, bem redonda, bem durinha, alguém a confundiria com uma moeda?
Ou com um caracol? Não importava com o que, mas o que mais queria era ser confundida.
Estava cansada de ser retinha, certinha, tão previdente! Queria enrolar-se a tal ponto que quem a olhasse não saberia mais se era uma minhoca, um caracol, uma moeda, uma coisa...
Isto faria com que vivesse esta sensação de não ser ela mesma, de ser considerada uma não pessoa. Viver esta sensação poderia mudar todo o rumo do seu caminhar no mundo. Talvez, depois desta experiência, poderia desenrolar-se lentamente traçando o caminho de volta para uma vida de pessoa. Tinha certeza de que não voltaria igual.
A cabeça, depois de enrolada, nunca volta igual. Ai como ela gostava de enrolar-se em si mesma!!!
02/02/2009

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Suplicio

Saboreio teus detalhes em cada pedaço do meu caminho. Degusto tuas idéias bebendo tuas palavras e os sons que formam. Lambo teus gestos em todas as minúcias. Sorvo teus beijos e me aninho em teus braços. Mas então te vais deixando-me em sede e fome. Solidão dos dias e noites, suplicio sem ti. 2/02/2009

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Abutre

O dia amanhece, silencio quebrado apenas pelo badalar dos sinos colocados nos pescoços das ovelhas.
O sol surge por entre as nuvens vermelho, anunciando mais um dia de sol.
Sinto a sempre presente sensação de vazio quando o dia amanhece na beira da mata.
Estou ali, sem estar.
De fora de mim me vejo e procuro convencer a mim mesma de que não há nada melhor do que estar neste lugar cheio de paz e nada melhor do que ali, tudo poder criar, pensar, fazer.
Canto.
A voz se perde no imenso espaço.
Passa um grupo de maritacas fazendo estardalhaço, felizes com o nascer do dia.
Um bando de pássaros canta, a coruja se retira.
Penso que o dia chegou e tenho de me movimentar.
Mas sinto-me presa.
Como uma árvore torta, plantada no lugar que não lhe pertence.
Os galhos se vergam e sinto o corpo pesado, pendendo para o chão.
Não deveria existir uma árvore assim em um lugar destes.
Talvez eu devesse ir embora.
Provavelmente é por este motivo que os pássaros não param.
Passam ao largo.
Percebem ali a presença do intruso que não se mescla com o bonito do lugar.
Ao longe, vejo um abutre que rápido se aproxima.
Este, decidido, pousa.
Veio para ficar.
03/04/07
Tudo a ver:
"Muitas vezes, nossa jaula somos nós mesmos, que vivemos polindo as grades em vez de libertar-nos"
Clarice Lispector em "A descoberta do mundo"