domingo, 31 de maio de 2009

Lua

A vida lá era diferente, falou olhando para a lua. O corpo não tinha peso e planava mudando de direção conforme o movimento dos braços e das pernas. Pelo fato do corpo planar, a cabeça não se fixava e os pensamentos não tinham parada, iam longe, traziam novas hipóteses e conclusões a cada momento.
As emoções, tornavam-se um turbilhão, como tempestade sem rumo certo, maremoto sem aviso.
Era estranha a vida na lua.
Impossível fazer planos, impossível tomar decisões. Ninguém saberia em que lugar do satélite planaria o corpo em determinado momento.
Não havia rotina, horário, método, roteiro.
De fome não se ouvia falar. Quanto ao sono, nunca se tinha certeza de estar dormindo ou acordado.
Era solitária a vida na lua.
Não se via ninguém. Até parecia que cada corpo ficava cercado de um grande campo magnético que não deixava nada se aproximar. Num repente via-se uma sombra, que poderia ser humana, passar ao largo.
Um som longe longe...Mas era difícil falar, na lua. As palavras dividiam-se em letras que se espalhavam, perdiam o significado e planavam, como os corpos.
A vida na lua apenas era.
Sem realmente ser.
Estivera lá não se sabe quando e seria impossível determinar quanto tempo ficara.
Depois disso, passou a ser considerado estranho por todos com quem convivia. Queriam que explicasse a lua, mas ele não sabia. Queriam certezas que ele não tinha, queriam uma lógica que não existia.
E então, porque na lua, aprendera a não ser, passou a viver na vida sem ser. E seguiu não sendo.
Até que passou a sentir-se, na terra, como na lua e só então tudo passou a fazer sentido.
17/12/06

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Parapeito

Naquela noite abriu a janela e o céu estava cheio de estrelas. Foi então que decidiu que voaria, do jeito que fosse, do jeito que pudesse. A vida andava sem novidades por ali e era hora de alçar vôo. Tinha um pouco de medo mas, mesmo assim, subiu no parapeito, abriu as asas que nunca ousara, esticou-as (o que nunca fizera), e voou. Primeiro devagar, depois mais rápido, rodopiando e fazendo círculos no céu. Então o ar puro começou a entrar-lhe no corpo e as coisas clarearam, as idéias se iluminaram e o novo apossou-se do que estava estagnado. Percorreu espaços, escorregou em galáxias, dançou em planetas e, só então, sentiu-se pronta para voltar. Plena da renovação, prometeu a si mesma que nunca mais deixaria de voar. Não importava se soubessem, se recriminassem, se zombassem das asas. Quando voltou, olhou-se no espelho e sorrindo para si mesma abraçou-se com força e disse forte e alto: eu vôo!!!! 28/05/09

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Janela Fria

O apartamento tinha uma janela enorme. Dessas que ocupam quase toda a parede.
Janela quadrada, na altura do chão. Do lado de fora muitas plantas que eu gostava de olhar, testa encostada no frio da janela.
Ali ele passava muitos de seus dias, em mudo desespero. Escrevendo, rabiscando e desenhando cenas que lhe passavam pela cabeça. Sem nexo, na maioria das vezes.
Naquela época sofrimento fazia parte da personalidade dos cultos, dos notívagos e dos poetas.Ele, sofria, apesar de ter todas as facilidades financeiras e emocionais. Talvez por isso sofresse. Facilidades demais.
Lembro-me de sua figura esguia, o sobretudo azul marinho que lhe cobria todo o corpo deixando de fora somente a barba, os cabelos e os inesquecíveis olhos azuis, que me encantavam.
Não sei a partir de que momento passei a acreditar que o que me faria mais feliz do que jamais havia sido, seria sofrer junto com ele. Dali em diante passei muitos dias no apartamento da janela grande, aprendendo a sofrer e a amar com desespero (arte em que me especializei durante anos a fio).
Ajudada por ele, esmiucei cada sentimento nefasto e, por ter aprendido com ele, passei anos sem desenvolver o que havia de melhor em mim.
Hoje, mentalmente, revejo as cenas daquela época, encobertas por uma névoa profunda. Entre as imagens, nós dois juntos procurando com afinco e dedicação sufocar qualquer sentimento alegre que teimasse em aflorar dentro de nós, impedindo o desabrochar da alegria que, hoje, é meu bem maior e mais profundo.
Tita 12 de novembro de 2004.
Tudo a ver
"Sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos"
Clarice Lispector em "A descoberta do Mundo"

terça-feira, 19 de maio de 2009

Sedução

foto: Orley Antonaglia
Não era esperado.
Mas aconteceu
passo a passo.
Um roçar de dedos,
um sorriso malicioso,
um encostar de joelhos,
uma palavra picante.
Após um segredo sussurrado,
o quase beijo,
o arrepio.
Muitas histórias contadas
com fala mansa,
com voz intima.
Quando me dei conta estava tomada
pelo inesperado.
Sentimentos borbulhando,
ansiedade tomando conta,
vontade, premência, urgência
do contato,
do tato,
do sentir os sabores.
Fui com pressa,
com paixão fui,
fui!
05/10/06
Tudo a ver
"Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados."
Caio Fernando Abreu em "Pequenas Epifanias - Sugestões para atravessar agosto"

domingo, 17 de maio de 2009

Carceragem

Em prisão voluntária colocou-se. Não é preciso trancar a porta.
Não sai por vontade própria embora sofra terrivelmente por permanecer.
Com a chave na mão, não se decide. Duvidas profundas quanto a seus próprios sentimentos e quanto à coragem de encarar uma vida sem os laços que o acompanham há tanto tempo. Dicotomia de pensamentos. Sai ou não?
Por enquanto fica ali.
Vez por outra arrisca um contato rápido com o mundo sem fronteiras. Chega a acreditar que não voltará à cela. Cheio de novas idéias e energia, inicia novos projetos, escreve novos textos, arrisca itinerários, telefona números nunca discados, canta e dança em pensamento.
Ao anoitecer, sente-se perdido. Em vão procura a serenidade, andando em círculos e por fim, qual detento em prisão semi-aberta, retorna encostando a porta da cela atrás de si.
Procurando não perder as esperanças fala consigo mesmo - um dia saio por aquela porta, abraço uma vida nova e não volto mais – enquanto uma voz interior persistente e longínqua sussurra: será?
30/01/08

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Entardecer

Ao sol se deu por todo um dia 
e então foi à praça e o pôs a dormir. 
Eu? 
Nem o vejo nem a mim abraça, 
nem esquenta nem me acorda. 
Vai ver nem mais me tem, 
pois só você o dorme e, 
sei bem,
nunca é aonde me durmo eu.
13/05/09

domingo, 10 de maio de 2009

Encontro

foto: Orley Antonaglia

Que bom ver-te de novo falar as verdades 
nos sabendo metades dizer das saudades 
a nos relembrar. 
Que bom ver-te disposto olhar iluminado 
e sem encontro marcado ficar a conversar. 
Que bom a fala animada de vida renovada 
saber-te querendo as coisas mudar.
Que bom lembrar de momentos, 
mexer com o fogo, 
reviver o jogo, 

a nos atiçar. 10/05/09

sábado, 9 de maio de 2009

Vazio

Veja só aonde tudo foi parar. 
Veja só o que restou, Veja. 
Foi-se a alegria dos olhos, 
A força dos abraços, 
O som da alegria. 
Foi-se o bater do coração, 
O enternecer dos olhos, 
A lagrima emotiva. 
Foi-se o prazer da chegada 
O sofrer da partida
O desfrutar da companhia. 
Foi-se a ansiedade da espera
O retumbar dos tambores
a musica alvissareira. 
Não mais o suor dos corpos 
o silencio aconchegado 
o entendimento sem palavras. Veja. 
A sala está vazia
As mãos sem parada 
Os olhos perdidos.. 
Veja só aonde tudo foi parar.
Veja só o que restou, 
Veja.

8/05/09

terça-feira, 5 de maio de 2009

Devaneio

Beijaram um beijo que não se sabe como expandiu-se e formou uma bolha ao redor dos dois.E o beijo durou, durou muito e foi um beijo tão cheio de malícias e de delícias e de vácuos cheios de molejos, que perderam a noção do tempo e do lugar e quando se tocaram tremiam-lhes as mãos, as mesmas que apertaram um ao outro cada vez mais juntos na vontade de se imiscuir e mesclar e pertencer. Então perderam-se neste sair da realidade, neste sonho, neste devaneio e quando procuraram voltar ao mundo não conseguiram e mais se abraçaram e mais se beijaram e deixaram tudo o que pudesse ser real e se afastaram, grudados, tomados, enlevados, juntos para longe, cada vez mais e não se largaram mais e falta de paz nunca, nunca mais.
30/07/08
Tudo a ver
"Não é de amor que careço.
Sofro apenas
da memória de ter amado."
Mia Couto em "idades cidades divindades" - Versos do prisioneiro (2)

domingo, 3 de maio de 2009

Eu danço


Me encanta teu canto! 
Me enredo 
me enrosco
acordes em tom 
vagando nos cantos 
de dentro de mim. 
Em dedilhar de cordas
de acordes sem fim 
me entrego me posto 
me enlevo no som. 
As vozes me tomam 
me deixo levar 
tua voz embalando 
cavaco a soar. 
No enlace me dôo 
teus passos eu sigo
teus olhos cantando 
meu corpo a dançar 
3/5/09