segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Fagulha

Quando chegou não imaginava que ela estivesse ali. Procurou fazer com que não o visse, andou de lado, deu-lhe as costas. Sentiu-se covarde e despreparado mas não sabia o que fazer no momento. E se ela o tivesse visto? Acendeu um cigarro e começou a conversar com um amigo, retornando ao salão pelo outro lado e não olhando nem um minuto na direção dela. Fingiria que não a vira.

Quando ele chegou assustou-se. Não imaginava encontrá-lo ali. Tinha certeza de que não a vira, pois estava de costas. Sentiu-se trêmula e despreparada e não sabia o que fazer no momento. Será que ele a vira? Levantou o queixo, endireitou o corpo e começou a conversar com a amiga, olhando de soslaio na direção dele. Fingiria que não o vira.

Ficou nervoso. Na verdade queria chegar perto dela, mas não sabia como. Ao mesmo tempo achava que não devia. Afinal de contas ela o magoara. Ele sabia que tinha razão. Ela estragara aquele encantamento tão delicado que ele sempre sentira. 

Ficou nervosa. Será que ele gostaria de chegar perto dela? Mas não, ela não devia. Afinal de contas ele a magoara tanto! Estragara aquele amor incondicional que ela sentia.

Decidiu-se. Melhor esquecer. Procuraria tirá-la do pensamento de uma vez por todas e se fosse o caso de se encontrarem, agiria normalmente. Relaxou. 

Decidiu-se. Melhor seria esquecer. Ele realmente não a amava. Procuraria tirá-lo do pensamento de uma vez por todas e, quando o encontrasse, agiria friamente

Ao pegar uma bebida encontraram-se. Nos olhos dele, fagulhas rancorosas. Nos olhos dela, fagulha certeira. Olhos fixos. Ele viu o brilho, ela viu o profundo. Ele teve vontade dela, ela quis se abraçar a ele. Aproximaram-se, ao mesmo tempo. Nos olhos dela uma lágrima, nos olhos dele um sorriso. Abraçados e emocionados, deixaram a festa, juntos.
 Tita - 30/05/08

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

M'estremece

Envolve meu corpo minh'aura minh'alma; 
deixa-me tonta m'enternece me bole; 
apossa-se m'envolve me toma; 
arrebata-me faz-me destemida e louca;
 então flutuo perc'o chão o rumo e a razão.
Tita 28/08/2009 
Tudo a ver
"Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doérá muito mais - por que ir em frente? Melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, um lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia - qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber porque."
Caio Fernando Abreu em "Inventário do Ir-remediável" - Caio 3D

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Mutante

Fui feita em molde mole
que em formato não se amolda
E que sem formato fica
a treinar se formatar.
Fui feita em data incerta
num relance, num repente.
Sem plano e sem esquema,
eu fui feita sem um tema.
Fui colocada em local
sem escolha ou previsão
Foi-me dado sentimento
sem me ensinar lição.
Fui feita de mil cores
que visto a cada dia
Na tristeza visto opaco
e brilhante na folia.
Fui sem esperar, chegada.
Eu nasci em novidade.
E por não ser pré-pensada
já fui feita com saudade
Por isso me mostro assim
A rir e a chorar derretida
Porque sou feita de mim
E me moldo com a vida.
Tita

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Um dia depois

A sensação da incompletude me acompanha e faz-me ver como sou impotente na condução do meu caminho. Rendo-me à constatação da minha propria impossibilidade e incompetência. Tita 24 08 2009

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Pissiricota

Houve vezes em que, sentindo-se bem numa pausa da doença que o perseguia, deixava-se brincar.
Cruzávamos meus braços com os dele, frente ao corpo.
Ele grandão, eu tão pequenina, a mão esquerda dele com a minha mão direita, minha mão esquerda com a mão direita dele (lembro-me de como me segurava firme). E assim, com as mãos cruzadas, saltitávamos a cantar durante todo o percurso do corredor lateral da casa (pissiricota, pissiricota, pissiricota pum! ). Pimpão, meu cão, corria junto latindo, alegre.
Muitas vezes repetíamos este saltitar e o prazer de estar assim com ele, nunca foi igual a nada na vida.
Depois de um tempo (tão pouco) ele se foi.
Então Pimpão esperava que eu chegasse da escola e, segurando com a boca uma ponta de um pedaço de madeira, chamava-me latindo a saltitar pelo corredor. Eu entendia, segurava a outra ponta, e procurávamos repetir a cena. Pissiricota...pissiricota.... Inútil. A alegria da infancia estava perdida e nada jamais seria o mesmo depois que meu pai se foi.
Tita 26/05/08

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Telhado de vidro

Você se lembra da noite no mezanino com o telhado de vidro mostrando as estrelas e de como você forrou o chão e deixou tudo macio e cheio de cores para me esperar e quase nem dormimos de tanto que tínhamos para nos dar e para falar?
Você se lembra do caminho até a praia, pelo meio do mato, você me segurando a mão e a praia vazia, só nós dois no silencio, olhando o mar calmo e sem ondas?
Você se lembra da compra na vendinha comprei patê e você comprou carvão para churrasco e depois você cantou e dedilhou o violão a tarde inteira e eu ali ao lado, embevecida e depois quase nem dormimos de tanto que tínhamos para nos dar e para falar?
Você se lembra do peixe vermelho numa praia longe aonde chegamos caminhando e de como era gostosa aquela carne forrada a caipirinha e dos pés afundando na areia porque era duro voltar e andar?
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Então eu entrei no mar, tonta de alegria e de tão tonta perdi meus óculos escuros.
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Houve aquele hotel que era gostoso, a janela aberta dando para o mar e ainda o outro naquela montanha fria, lembra você me abraçando enquanto eu olhava pela janela aberta e de como depois quase nem dormimos de tanto que tínhamos para nos dar e para falar?
Você se lembra da van que numa noite levou só nós dois até o restaurante com aquela musica tocando bem alto e de como durante o trabalho, os olhares se encontravam e de longe se prometiam e se esperavam?
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Então eu sorria, tonta de alegria e de tão tonta, perdi a noção das coisas.
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Outro dia você me mandou uma poesia lembrando e vira e mexe escrevo uma lembrando ou releio, porque você sim escrevia poesias bonitas e me ensinou a escrever desde aquela primeira que você me deu e daquela outra e mais a outra e a outra e ainda aquela outra de que tenho certeza você não se esqueceu porque aquela deixava você tonto e me deixava tonta e de tão tonta eu perdia o rumo e só sabia amar e nada mais. Será que não encontramos, depois de tantos anos, outra coisa para lembrar?
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Então me lembro e quando lembro fico tonta e de tão tonta perco o rumo e o caminho e quase nem durmo de tanto ter para lembrar e não ter pra quem falar.
Tita 04/12/07

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Tufão

É a vida apontando desvios, 
a voz oculta atiçando, 
o vulcão, 
os desvarios. 
O imensurável se aproxima 
invadindo sem cautela
os mudos sentimentos. 
É o receio do desconhecido, 
a perda do andar certeiro, 
o exagerar das manifestações. 
O previsível se vai, 
as mascaras caem, 
despem-se as vestes. 
É a constatação da nudez indisfarçável. 
É o escancarar das portas, 
o mergulho inevitável? 
 Tita - 19/08/2009

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Em você, em mim

Você em mim
em abraço profundo.
Num laço em enlace,
a pensar pertencer
em você de mim.
Você a faltar sem mim
E eu sem você a faltar
ainda sonhando
e querendo
em você estar.
Imersa,
dispersa,
a sentir e supor
prazeres sem fim.
A sonhar,
o momento completo
do você em mim.
Tita - Sem data

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Saxofone


Ele gostava de dizer que era seu mentor musical. Ela aceitava e sorria um sorriso intimo, desses que a gente sorri para si mesmo e não demonstra pelo lado de fora; desses que a gente disfarça e que fazem um bem enorme porque se espalham pelo corpo fazendo vibrar cada pedacinho de pele, cada órgão, cada tecido interno. Assim ela gostava de sorrir quando ele dizia isso.
Não queria que ele se sentisse muito importante com seu posto de mentor. Gostava que ficasse na duvida se ela concordava ou não e a cada vez que dizia de novo, ela fazia essa cara de quem nada sentia e por dentro vibrava e ficava contente com o fato dele ser a pessoa que mostrava a ela todas as notas, percebia exatamente o que ela gostava, prestava atenção no que ela dizia a respeito de cada frase musical. Ela gostava destas minúcias nele e das minúcias que ele percebia nela e se encantava com as coisas nele que o faziam diferente das outras pessoas do mundo.
Uma pessoa única era ele que, de tão única na imaginação dela, quase se tornava um instrumento. Por vezes podia ser um violino com notas melodiosas e carinhosas, por outras um violão alegre, havia dias em que era um pandeiro agitado e outros em que se tornava uma piano a soar num fim de tarde. Mas os dias que mais a encantavam eram aqueles em que ele se tornava um saxofone e ela o escutava ao longe e cada vez mais perto, a cada passo um acorde mais alto, ele vinha chegando, vinha aos poucos e ela se tomava pelo molejo do som, seu corpo vibrando, seus ouvidos ouvindo apenas a ele e mais nada, seus movimentos seguindo a musica e então ela se abandonava, se rendia, se perdia olhos nos olhos, misturava-se no sopro que soprava o instrumento, imiscuía-se, se entregava e se dava toda, completamente, a ele.

Tita 13/4/2009
Tudo a ver
"A presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua emoção não dita."
Caio Fernando Abreu em "Morangos Mofados - NATUREZA VIVA"

domingo, 16 de agosto de 2009

Poema Roubado - A. Soares

Saudade Daquela Praia

Tenho saudade daquela praia.
Das noites, na cama, sacanas.
Do amor, das tramas.
Nós incandescentes, rubros,
deliciosos-indecentes.

Tenho saudade daquela praia.
Dos dias, das idas, das voltas.
Das revoltas dentro de mim remoto.
Dos maremotos dentro de ti exaurindo.

Tenho tanta saudade daquela praia e de ti,
Que não sei como explico e onde permaneço perdido.
Apenas lembro pardo e estático e sorumbático,
Da imensidão das ondas dos pequenos momentos existenciados.

Me lembro de ti, como quem lembra de jóias, brilho, céu e prazer.
Me sinto em ti, como quem ousara existir sem tua presença.
Meus troncos, meus braços, a tua presença transbordante, sempre
Em mim se espalhando, invadindo as noites, bonita e gostosamente.

O teu amor moreno-de-sol-e-de-mar,
Me desejando sangrento, não tímido, total,todo teu:
A tua paixão me querendo infinitamente animal.
O teu carinho me desenhando tal e qual, encarnados desejos.

Saudade daquela praia.
Momentos que não viveremos tão fácil, nem tão cedo, outra vez.
O destino não nos desenhará curvas tão simples.
Nem o mar em linhas retas.

Sobreviveremos - a despeito dessa distância daquela praia.
Da tristeza do agora, da saudade do mar,
Das lembranças dos momentos mágicos vividos,
loucos-nosssos-colados, intensos e totais.
Enquanto existiram.
Que saudade daquela praia!

A. Soares - 1999

 

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Descoberta

Por entre a floresta
dos meus sentimentos,
mergulhando nas ondas
das minhas marés,
saindo dos círculos
dos trilhos cansados,
dentro do profundo
dos meus pensamentos,
mergulhada na orgia
de meus achados,
entremeando de risos
os meus momentos,
dando vida
às minhas carícias,
fazendo real
o imaginário,
pintando de cores
o despertar em mim...
Descubro encantos
que quero alastrar,
compondo musicas
em tom maior.
Tita 20/10/2006
Tudo a ver:
"Às vezes tenho a impressão de que surjo do que escrevi tal como uma serpente surge da sua pele"
Vila-Matas em "A viagem vertical"

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Atração

É como ar que passa modelando o corpo, (curiosidade me toma) 
Como dedos suaves que acariciam, (inusitado se aproxima) 
Como penugem arrepiando leve (desconhecido se apossa) 
Como brisa quente em praia de sol (sons alegres dispersos no ar) 
Fumaça colorida (sorriso surgindo sem hora) 
Meu ser todo tomado (languidez, maciez) 
Sentidos me abraçam (imaginação inunda) 
Rodopios sem som (eu quero dançar!) 
Tita 10/08/2009

domingo, 9 de agosto de 2009

Roubo

Meus anseios devorou
minhas curvas devassou
meus caminhos descobriu
meus pensamentos roubou.
Apossou-se de tudo.
Sorveu-me, 
bebeu-me,
roubou-me de mim.
Não mais me tendo no inicio pós fim,
sou corpo sem alma,
mistério de mim.
Tita 30/05/08

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Movimento

Vem e vai,
chega e afasta,
dá e tira,
faz que sim
agindo não.
Então sorri
e diz macio,
depois se vai
e cala a voz.
Vejo o jogo,
escondo o fogo,
então sorrio,
delicada acaricio.
Embevecida,
faço que vou
e amedrontada
me afasto,
nada peço
e nada dou.
Tita 07/08/09

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Prenuncio?

Paraliza-se o corpo, o pensamento,a hora.
Deve ser o prenuncio do que não se sabe,
ou que parecia que se sabia mas não se sabia,
ou que parecia que não se queria mas talvez se queira,
e que nem se pensava mas talvez se pense,
nem se encontrava mas talvez se encontre.
Deve ser o inicio do que não era mas talvez seja
e parecia que não se sentiria mas talvez se sinta.
É o prenuncio do que ja foi
ou do que por nunca ter sido jamais será? Tita 03/08/09
Tudo a ver
"Era como ler uma vida paralela à minha, e ao falar na primeira pessoa, por um personagem paralelo a mim, eu gaguejava."
Chico Buarque em "Budapeste"

Outono

Lembro-me das cores fortes quando passeávamos no parque. Alamedas e alamedas, nem sei como conseguíamos achar o caminho de volta. Era leve, era bonito, alegre, não havia preocupação com o depois e nem mesmo fazíamos planos porque, naquele momento, nada nos faltava.
Você se lembra?
Passeávamos no parque nos fins de semana e, durante a semana, pelas ruas iluminadas.
Entrávamos no teatro, no cinema, no que fosse e, na busca de nada, encontrávamos sempre algo novo para preencher os momentos.
Vivíamos o desconhecido de cada instante com calma e interesse.
Sempre colorido, sempre calor, sempre verão e primavera, sempre você e eu.
Faz muito tempo.
Você se lembra?
Quando você se foi não voltei aos parques nem andei pelas ruas, nunca mais encontrei quem gostasse de parques ou de andar sem rumo, em silêncio, contemplando a natureza.
Quando você se foi fez-se outono e, por muitos anos, não vi flores e nem cores.
Quando você se foi, perdi minhas matizes.
Fiz-me outono e misturei-me com as flores secas do chão.
Tita 12/05/2008