sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A mesa ao lado

Chega o dono do mundo. Carrega uma maleta e mal fala bom dia. É um homem que trabalha bastante e deve ser por este motivo que tem de franzir a sobrancelha e mostrar-se muito, deveras, extremamente, preocupado. Sem duvida tem todo o direito ao destempero, coitado, fica nervoso, tantas coisas para resolver, tantas dificuldades a ser decididas, tantas prioridades a determinar, coisas de lideres, coisas de executivos, coisas de homem. Irrita-se com a impressora, geme quando o telefone toca, bufa quando chega a pessoa para a reunião. Em seguida derrete-se ao telefone sendo gentilíssimo com alguém, fala alto, ri exageradamente, sem a menor consideração pela pessoa que trabalha ao lado. Ela observa e já quase não suporta. Ela vê, procura não prestar atenção mas não consegue. Não gostaria de pensar nada, mas lhe vem à cabeça que deve ter feito ou deixado de fazer algo muito importante até aquele momento de sua vida, para merecer ter de conviver com esta cena de ópera bufa dia após dia.

Tita - 31/10/2009

Tudo a ver "São manhosas as palavras, e rebeldes, e fugidias. Não gostam de ser domesticadas" Rosa Montero em "A Louca da Casa"

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O Tempo

Aproveitar cada momento, 
planejar os detalhes, 
escrever as gracinhas, 
viver pequenas bobagens, 
beijar os beijos demoradamente,
aparecer de repente, 
cuidar as feridas, 
curtir as caricias delicadamente, 
andar na praia, 
comentar os filmes, 
cozinhar em conjunto,
esquentar um ao outro numa noite fria,
ler lado a lado, 
fazer os planos, 
olhar dentro dos olhos,
ajudar nas dificuldades, 
conversar noite a dentro,
aproveitar as viagens, 
saborear as comidas,
passear sem rumo, 
beber em conjunto, 
abraçar muito, 
rolar na cama, 
viver a grande paixão.
Procuro encaixar tudo, não deixar nada escapar. 
Mas os castelos desmoronam antes do tempo. 
As gentilezas acabam antes do tempo. 
A constatação da realidade vem antes do tempo. 
A vontade de chorar vem antes do tempo 
e eu constato que não deu tempo.
Tita 2006/2009

Pouco

É pouco muito pouco. 
Não preenche buraco, não amacia quina,
não destrava portas, não desembaraça fio. 
É muito pouco, é pouco demais! 
Recuso, jogo fora, não quero, leve embora.
Não titubeie nem olhe pra trás 
mereço muito, muito mais. 
Tita - 26/10/2009

domingo, 25 de outubro de 2009

lança-perfume

Não me lembro se não se falava em drogas ou se nunca tínhamos pensado nisto ou escutado a palavra. Parecia tão divertido e sem problemas carregar um frasco de lança-perfume para o baile de carnaval... 
Salão cheio no carnaval em Jaú, tenra adolescência. Dançávamos em pé sobre as mesas espirrando lança-perfume nos meninos bonitos que passavam ou, abraçadas a eles, cheirávamos aos poucos nos ombros das camisas, rindo muito, como se nada fosse, abertamente e sem peso nenhum de consciência. 
Não nos avisaram? Ou não escutamos? 
Um dia veio o susto: alguém amigo havia adormecido com a cabeça em um travesseiro cheio de lança-perfume, para nunca mais acordar. 
Do susto veio a tristeza e da tristeza o medo. 
Havíamos desafiado o perigo sem nem mesmo saber ou perceber. 
Diante da morte estávamos nós, cheios de vida. 
Surpresos ante o desconhecido, abalados ante o inesperado, amadurecidos, antes da hora. 

 Tita 28/01/08 - revisto em 26/10/09

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Só para mim

Não sei por onde começar, você quer mesmo saber? 
É pouco, quase nada. Não sei por que adquiriu esta importância. 
Eu conto, eu conto... é que na verdade não é fácil contar, mexe comigo, me emociona, às vezes até escorre uma lágrima e, sabe, parece mentira, mas só de pensar em contar meu coração dispara, sinto de novo cada segundo, o corpo treme, a voz não sai... 
Vai ver é por isto que é tão difícil...
Desculpe-me, não consigo contar, não sei o que dizer, suo frio, fico nervosa, emudeço.
Sabe, resolvi não contar. Peça-me outra coisa mas isto não. 
Vou guardar só para mim e sentir de novo, e de novo, e mais ainda, a cada vez que me lembrar.  

Tita - 21/10/2009

Tudo a ver
"Há outras vidas, mas elas estão na nossa."
Paul Éluard

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Necessidade


É preciso fluir. 
Evoluir sem trancos, 
unir inícios e finais, 
recomeçar suave do que se concluiu. 
É preciso a leveza do caminho tranquilo que una todos os sentidos tornando possível o caminhar. 
É preciso transformar em arte as expressões e os pensamentos, em sons melodiosos, 
em sabores que incitam e excitam, em sensações que aprofundam e envolvem,
em desenhos e cores que transportam, em palavras que se derramam sobre o papel e tornam o irreal reconhecível e o imaginado exequível. 
É preciso harmonia, equilíbrio, estética e luz.
E acima de tudo, é preciso fluir.
Tita - 18/10/2009

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Never

A maldade das pessoas que pareciam queridas, a falta de reconhecimento dos esforços, as respostas bruscas, as pequenas mentiras que machucam mais do que as grandes, as traições de confiança, as mudanças de atitude, a constatação de ter julgado alguém melhor do que é realmente...
A cada desapontamento o coração se quebra de forma dolorosa e demorada, perde pedaços, transforma-se, amolece, quase se desmancha, adoece, a ponto de, ao voltarem a força (a incansável) e o crédito no ser humano, por vezes refaz-se (o coração), mas, as regiões endurecidas pelo estrago, estas não se refazem, não mais. 
Fica então um coração, trôpego, que à custa de muito esforço retoma as batidas fortes e a esperança. 
Segue, rebusca, procura, insiste e até acha. Mas a doçura...
Ah, o sentimento nobre o derreter-se frente ao simples, o dar-se livre de amarras, o constatar e falar cara a cara, o abraçar sem medo, o entregar-se, o abandonar-se à ternura pura, genuína
e simples, não se recupera nunca, 
jamais, never, mais.

Tita, 15/10/2009

Tudo a ver 
" Se me acerco das janelas é apenas para ver o longe, as tenues linhas do azul inatingível. As portas, fechadas ou abertas, pouco valem. Desfaleceram com o desencanto dos caminhos. Vou ficando pela distração dos desejos mansos, sem guardar réstia de glória nem consolo. Assim, dou feriado à minha existência. Mia Couto em "Raiz de Orvalho e outros poemas"

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sem medida

Vou passando pela vida sem deter-me para percebê-la. 
Pulo etapas, não me fixo em sensações, escapam-me sentimentos. 
Levada pelos acontecimentos, ansiedades, obrigações e necessidades, pulo obstáculos, atravesso intempéries, tomo desvios para cortar caminhos. 
Sigo sem ver e, por não ver, sigo como quem não vai, mas é conduzido. 
Abandono-me ao vento e sigo incansável, sem análise ou temor. 
Apenas vou, como quem deve ir e não pode estancar o corpo e os pensamentos. 
Como quem, por ter começado, não pode parar.

 Tita – de 2008, re-escrito em 7/10/2009

Tudo a ver
"E o que redime a vida é ela não caber em nenhuma medida"
Miguel Torga

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A lua na minha janela

Tita - 02 de outubro, 2010

Montanha-russa

Estou em busca de paz, dias metódicos, tarefas costumeiras, repetições previsíveis. 
Quero conversas calmas que não pressuponham idéias contrárias. 
Livros, só aqueles que não fazem pensar ou, até mesmo, reler os já lidos. 
Comidas sem muito tempero ou cor, pratos de elaboração simples e inconseqüente. Sensações apenas as mais corriqueiras.
Pensamentos? Os de sobrevivência.
Nada de imprevistos. 
Até pensei em treinar meditação, aulas de yoga, escutar mantras...bem eu... 
Quem sabe desta maneira encontro novas idéias, pensamentos diferentes, dias cheios de novidades, conversas agitadas, livros nunca lidos, comidas apimentadas? 
Quem sabe desta maneira recupero o coração aos saltos e a sensação de recomeço a cada minuto?
Quem sabe? Pois só o que busco é a alegria da vida, a paz sempre renovada, o corpo abandonado ao imprevisto e a sensação da curiosidade impaciente e cheia de adrenalina, como numa montanha-russa. 
Tita - 29/11/07