quarta-feira, 31 de março de 2010

Falta

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Era quando as borboletas entravam em revoada que se instalava o desassossego. Então se desassossegava também o corpo, preenchendo-se de espasmos que mal controlava. O vácuo aumentava e eclodia tomando todos os cantos, inflando as entrâncias e  saindo em quase grito pela boca aberta. É isso, é isso! É assim a manifestação da perda irrecuperável, do que não arrefece, do que não esmorece!
Constantemente conjeturava quem iria entender o verdadeiro significado de suas frases e ainda desatar os nós que dava quando não conseguia decifrar-se. Haveria alguém de lhe dar aquele prazer incomensurável de livrá-la dos volteios e ainda esclarecer dela a ela mesma? Tardes e noites de euforia haviam sido aquelas da conjugação total de idéias e do completo despejo dos mais escondidos pensamentos. Talvez por isso a voz nas gravações se mostrasse tão viva, as poesias ainda arrepiassem e a ansiedade mal desse folga. Era tanta a falta que até se esquecia do quanto lhe pedia,lhe exigia, lhe queria, insistia e a sufocava de tanto se apossar de todos os espaços fazendo-a fugir, correr, sumir, pensando nunca mais voltar, mas voltava e sempre voltava, porque lá era o único lugar de um tipo de completude que só ali conhecera. Voltava depois das ousadias e mesmo depois das maldades que ele fazia só para que voltasse porque ele também só ali se completava da mesma completude que trazia a luz do de dentro dos dois.
Hoje o ramo trazido pelo vento no dia do enterro ainda afirmava que jamais perderia o verde e ali ficava a provar que, mesmo ido, ainda  exigia, queria, insistia. 
Ela quase podia vê-lo e percebê-lo porque sabia o quanto ele se regozijaria com esse momento e lhe sorriria um sorriso único repetindo com gosto e e diria, eu sabia que era muito maior o que você sentia, ah eu sabia que você sentiria essa falta áspera, porosa, sofrida e ardida, que você sente de mim!

Tita - São Paulo, 31 de março de 2010.

domingo, 28 de março de 2010

Como dizer?

Vez em quando me olha com um olhar desligado do resto do corpo, sabe como é? Um olhar vazio, sem fundo, como se pudesse ser ultrapassado e, olhando através dele, nunca se chegasse a um fim. 
Melhor não encarar. Dá medo. Você já viu um olhar assim?
O dele, na maioria das vezes tão acolhedor, num repente consegue transformar-se a esse ponto. Nessas horas imagino que o interior da cabeça que consegue produzir aquele olhar, deva estar repleto de um liquido escuro e pastoso em ebulição constante, você não acha?
Nesses momentos, quando chega perto de mim sinto a tensão sem nem precisar olhar aliás, nem olho, grudo meus olhos no chão e paraliso meu corpo.
Talvez pudesse ajudar, talvez pudesse mas sinto tanto...e penso: meu querido, não posso mover meus passos por esse atroz labirinto que se tornou a sua mente então perdoe-me, eu me afasto. 
Não sei o que poderia acontecer se não me afastasse, sabia? Devo ser covarde, vou saindo, disfarço, vou embora. Como dizer a ele que tenho pavor daquele olhar? Como dizer a ele que a cada vez que isso acontece penso em não voltar nunca mais? Você acha mesmo que devo dizer? 
Fico aqui pensando: de onde virá este medo? Não vou dizer o que eu penso porque na verdade eu sei, aqui dentro, eu bem sei: tenho medo é de olhar nos olhos dele porque aquele olhar vazio chama o meu e um olhar meu, firme, vai me fazer mergulhar dentro dos olhos dele, vou sair de mim, vou entrar no liquido pastoso daquela cabeça, vou misturar meus pensamentos nos dele e ai! Não quero! 
Ai que medo de mim! 
Ai que medo! Eu heim? 
Eu é que não quero ver aqueles olhos vazados!

Tita - 28 de março de 2010 
photo: near death experience
Midnight digital
 http://www.flickr.com/photos/midnight-digital/4070053048

sexta-feira, 26 de março de 2010

In vino veritas


Quando ficava bêbado chorava por qualquer coisa.
A sensibilidade aflorava, apaixonava-se, entregava-se e era capaz de, em segundos , decidir novos caminhos, mudar o rumo da vida.
Sentia-se tão carente que, se alguém lhe demonstrasse carinho, conquistava seu coração totalmente. Não suportava solidão e podia unir sua vida a outra num repente.
Transbordava um amor tão grande que tinha de distribuí-lo; fazia novas amizades, declarava-se aos amigos, ficava noivo de quem mal conhecia e, invariavelmente, encrencava-se de todos os lados: pelas promessas feitas, pelas despesas que prometia pagar no dia seguinte, pelas decisões que não levaria adiante.
Era assim quando ficava bêbado. No dia seguinte ao acordar conjecturava: "por que faço isso, por que?" e todos as manhãs prometia firmemente não mais beber. Mas as manhãs se tornavam noites e as noites não seguravam promessas. Ficava bêbado em todos as noites e arrependido em todos os dias. Repetia-se, incansavelmente, como um animal treinado. E como um animal treinado repetiu-se, até o fim.
Tita - São Paulo, 26/03/2010
imagem: In vino veritas - Armando Vernaglia http://www.flickr.com/photos/armandovernaglia/4054301452/

segunda-feira, 22 de março de 2010

Leveza

Neste fim de semana deixei a desalegria de lado. 
Troquei sentimentos e escutei sinceridades.
Percebi musicas com um novo ouvido 
e vi em vidas diferentes um maior sentido. 
Vivi coisas que não costumo, 
fiz-me livre, 
deixei-me ser nos momentos, 
extravasei, falei, cantei 
e aproveitei os movimentos. 
Neste fim de semana não sonhei, v
ivi apenas o existente. 
Recolhi risos, 
reguei-me de felicidade 
e me fiz feliz. 

Tita - São Paulo, 22 de março de 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

cadê?

foto: caricia - http://www.flickr.com/photos/pabloske/
Os olhos mergulham as mãos se procuram, arrepio percorre todo o corpo.
Chega mais perto, vem cá, não se vá ainda, abraça-me mais, aperta com força e fica perto, bem perto.
Quero sentir sua respiração em mim, fala baixinho, me beija e sussurra, sente a minha pele, deixa que eu me abandone, me segura estou tonta, me aperta, quero você perto, não solta, não solta, fica assim, grudado em mim.
Cadê você?
Cadê você?  
Tita - São Paulo- 18/03/2010

quinta-feira, 18 de março de 2010

Laqueadura

Pode-se laquear a vida, você sabia? E, vista de fora, fica assim, com uma cobertura lisa e bem brilhante, que chega a fosforescer.  

Tita - São Paulo - 18/03/2010

Tudo a ver O autor precisa sair de si mesmo e examinar sua própria realidade de fora, aom o meticuloso desapego com que o entomologista estuda um besouro. Rosa Montero em "A Louca da Casa" 

 PS: Um besouro também pode parecer que foi laqueado e muitas vezes brilha, quase fosforesce!!! eu fosforesço, tu fosforesces, ele fosforesce, nós fosforescemos.......

terça-feira, 16 de março de 2010

Roupa nova

Um dia descobriu que podia inventar uma vida. Teceu com cuidado tecido colorido, escolhendo fio a fio. Desenhou e mediu molde de ilusões, colocando curvas de alegria e pences de prioridades. Cortou devagar retirando pedaços indesejáveis, e deixou que a tesoura corresse formando curvas suaves. Alinhavou os acontecimentos a serem vividos, provou, tirou os defeitos que encontrou e então costurou tudo, com esmero e perfeição. Em uma manhã tomada pelo calor do sol, vestiu-se e abriu a porta da rua. Observou sem medo o cenário cheio de luz e saiu para o palco, não sem antes instalar nos lábios o sorriso da certeza do sucesso.  
Tita - São Paulo - 16/03/2010  
foto: roupas novas - http://www.flickr.com/photos/piteka/

segunda-feira, 15 de março de 2010

Escolhas catastróficas

Eu falei que ia escrever sobre escolhas catastróficas, não falei?  
Falou. 
 Pois é, eu falei... 
 E?  
E agora tenho de escrever
 Então escreve!  
Não é facil...  
Senta e escreve tudo o que vier à sua cabeça.
 Escolhas catastróficas sempre resultam em catástrofes?  
Se você acha que sim, melhor não escrever.  
Eu posso escrever o que eu quiser... 
Então escreve!  
Eu acho que as escolhas podem ser catastróficas mas os sentimentos nunca o são.  
E você tem de pensar tanto assim para escrever? Deixa a coisa vir, coloca a caneta no papel, es-cre-ve!  
Sabe o que é? Os sentimentos tomam conta de mim, atrapalham tudo, teimam em analisar as situações ininterruptamente...  
Ai que chato! Para de pensar e escreve!  
Tá bom. To escrevendo. 
 Então, não esta bom assim?  
Você acha que está?  
Eu acho.  
Então tá.  

Tita - São Paulo - 15/03/ 2009

domingo, 14 de março de 2010

Remos

foto: Sunrise Paddling - Imapix - http://www.flickr.com/photos/lesec/3369591291/

Com lágrimas nos olhos pensou: fica, fica! Mas nada disse.

Então ele subiu na canoa e se foi,

a remar.

Na curva do rio,

perdeu-se da vista;

na curva da vida,

desapareceu;

na curva do coração,

o vazio impreenchível.

Na lembrança ficou o vulto

diminuindo ao longe,

o som do bater dos remos na água.

Quem sabe um dia

há de voltar,

quem sabe um dia,

quem sabe?

Inda hoje,

sentada na beira do rio,

perde os olhos no horizonte

e escuta os remos,

barulho ritmado,

barulho compassado,

barulho de passado.

Som de tristeza não se esquece.

Tita - São Paulo, 14/03/2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

Espuma

espuma para Jill http://www.flickr.com/photos/cheekyana/
Talvez a magia surja nos raiares dos dias ou nas madrugadas adentro.
Pode ser que venha através de uma palavra sussurrada, de um aparte inesperado ou ainda, seja trazida pelo vento.
Quando se instala, escolhe lugares inesperados.
Uma vez a senti fazendo borbulhar meu estomago, outra vez instalou-se no peito e tornou meu respirar entrecortado.
Houve ocasião em que transformou meu corpo todo em espuma e tive de fazer um esforço enorme para que não se espalhasse pelo chão ou fosse desintegrado pela água da chuva.
Hoje aprendi a carregá-la e o faço com cuidado, porque gosto de tê-la comigo.
Quando não a tenho o tempo corre lento e sem alegria, sinto-me perdida, sem brilho e sem emoções que me sirvam de alimento.

Tita - 11/03/2010

terça-feira, 9 de março de 2010

Fim de semana

Você foi coisa passageira. 
Aconchegante, mas sem duração,  
envolvente, sem repetição. 
Você foi interessante mas sem furor,  
esperado, mas pouco louco, 
muito sonho, mas amor pouco. 
Foi coisa que bole e desestrutura,  
coisa que atiça, mas não sem cura. 
Foi um relance, quase me revoluciona.  
Parecia paixão, de tão boa até insana,  
mas foi fugaz, como um fim de semana.  

Tita revisto em 9/03/2010

segunda-feira, 8 de março de 2010

Camila e Juarez

Camila e Juarez conversavam bobagens. Skype, MSN, e-mail, torpedos, só frases curtas, palavras abreviadas, meias palavras. Muitas vezes nem conversavam, mandavam um ao outro interjeições, letras desconexas, palavras soltas. Dia em que Juarez não aparecia virtualmente, Camila entrava em parafuso. Se Camila não respondesse a alguma provocação, Juarez se descontrolava. Aos poucos começaram as cobranças de um lado, ei, estou aqui, não vai mandar nada? E a falta de vontade de responder do outro lado, ai que chato, estou fazendo mil coisas e ainda tenho de ler reclamação? Não demorou para se desentenderem e, sem nunca se terem visto pessoalmente, terminaram o relacionamento. Camila entrou em depressão, chorou copiosamente durante dias, sentiu-se abandonada e só. Juarez reafirmou sua falta de confiança nas mulheres, saiu para beber várias noites seguidas e prometeu a si mesmo desistir de procurar relacionamentos com amor. Depois de algumas semanas, ainda inconformado, Juarez chamou Camila: quero conhecer você, pessoalmente. Camila ficou nervosa, vamos deixar como está, ja sofremos tanto! Ele insistiu, teimou pediu, repetiu, até que ela concordou. Quando chegou ele ja estava. Sentou-se, sorriu, ele sorriu de volta. Ela pensou que estranho, não sinto nada. Ele também estranhou. Falaram do tempo, das ultimas noticias do jornal, procuraram outros assuntos sem encontrar. Ela bocejou, ele disse que tinha de acordar cedo, muito trabalho, ela disse eu também, melhor ir dormir, beijinho rápido no rosto, cada um para o seu lado. Dia seguinte ela o bloqueou no MSN e deletou o numero dele de seu celular. Ele fez a mesma coisa. Tita - São Paulo, 7/03/2010 foto: virtual city - ToniVC - http://www.flickr.com/photos/tonivc/

sábado, 6 de março de 2010

Pétalas

petalas - NataliaKF http://www.flickr.com/photos/nataliakf/  
Não chegarei com os braços cheios de estrelas,
nem levarei um buquê de flores.  
Não comprarei chocolates,  
nem escreverei estrofes.  
Não passearei contigo pelas ruas vazias da madrugada,  
nem serei tua companhia no raiar do dia.  
Não velarei teu sono,
nem esperarei pacientemente que acordes.  
Não se repetirá o que provamos,  
nem experimentaremos o que haveria de vir.  
Porque estranhei tua imaturidade  
e tua pouca idade.  
Senti-me só
e me despedacei.  
Minhas pétalas espalharam-se pelo chão,  
fiquei nua  
e tenho frio.  

Tita - São Paulo, 06 de março de 2010

quinta-feira, 4 de março de 2010

Penso?

André França - nightswimming- http://www.andrefranca.com Repenso pensamentos enquanto penso e penso em repensar outros que ja pensei. Penso que pensando posso criar novo pensar e inovar os pensamentos que repenso. Desta forma recrio o repensar. Tita 04/03/2010

terça-feira, 2 de março de 2010

Verve

Tive um amigo que, um dia, parou de escrever. Um dos motivos foi que a amada, fosse o que fosse que ele escrevesse, ou se apossava com fúria e publicamente do que ele tinha escrito ou enciumava, enciumava a tal ponto que o desanimava de escrever o que quer que imaginasse. Um dia parou. Chegou a re-colocar alguns textos que havia escrito em outras épocas mas, em determinado momento, desistiu e nunca mais escreveu. Resta o blog dele, tão lindo mas vazio antes da hora, o talento emudecido, por ter se deixado influenciar pela chatice do ciúme e pela fúria apossadora. Até hoje me pergunto por que não teve força suficiente para dar um basta e continuar a escrever o que quer que sentisse, quisesse ou inventasse. Nós que escrevemos, gostamos de sentir, seja o sentimento imaginário ou não e gostamos, muitas vezes, de inventar o sentimento, só para que nos pegue e de nós se aposse fazendo com que transbordemos, em golfadas, no papel. Eu mesma misturo as coisas, escrevo o real com o imaginário, invento amores ou desamores, e gosto, gosto muito, de deixar minha mente voar porque ela me transporta e faz com que eu passe por sentimentos reais em pensamentos imaginários e me deixa viver situações inexistentes em que aproveito muito as alegrias e as tristezas de que me aposso em mim mesma. Contudo, vivo passando maus bocados devido a esta verve escrevente e inventativa. Tive um namorado que, mais de dez anos depois de tudo terminado, ainda cismava em achar que qualquer coisa que eu escrevesse era dirigida a ele. Chegava a desculpar-se por coisas que teria feito, sentia-se entristecido ou alegre a depender do que lesse vindo de mim. Ainda hoje passo maus bocados, principalmente quando quem me cerca sente-se destratado ou atacado por seja lá o que eu tenha escrito. Quando poderemos, nós que escrevemos, inventar em paz? Para inventar somos obrigados a nos manter afastados de qualquer relacionamento? Ai que saudade tenho de quando meu amigo escrevia!
Tita - São Paulo, 01/03/2010  
Tudo a ver "Se o meu tumulto de devaneios narrativos terminasse, como fazer para continuar levantando-me da cama todos os dias?" Rosa Montero em "A Louca da Casa"