sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Migração


Escuta-se, vira e mexe, sobre a migração de aves, abelhas, peixes...Estes últimos são os que (a meu ver) mais sofrem quando se esforçam, rio acima, procurando ambiente propicio para a desova.
Que cansativo nadar contra o rio enfrentando cachoeiras e predadores, num esforço supremo para encontrar águas tranqüilas aonde procriar e ser feliz! Provavelmente, após a desova, abandonam o corpo para que seja levado ao bel prazer do rio, de volta ao lugar de onde vieram. Ou não? Não tenho conhecimento desta volta. Retornam para o mesmo lugar ou são levados a outro? Haverá os que desistem da ida sabendo da volta certa? Saberão de antemão, os fracos e subnutridos, que a ida será, para eles, caminho final e sem volta?
Um dia vi, em rio largo de águas limpas e silenciosas, um grande cardume, empenhado no esforço de enfrentar a correnteza em sentido contrário.
Procurei ajudar um dos mais miúdos, que não conseguia acompanhar o bando. Porém, tudo o que fiz foi cansá-lo ainda mais. Debateu-se, nervoso. Mesmo após ser deixado a sós continuou a debater-se e, incapaz de recuperar-se, morreu.
Procurei pegar o pequeno cadáver para enterrá-lo, mas, rígido e liso, escapou-me das mãos.
Sentada na canoa olhar fixo nas águas do rio, constatei: ajudar o próximo sem ser chamado, nem sempre é o melhor caminho.
Tita - 24/02/2011



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Um e dois

Amaram um amor ingênuo, as personalidades a desbotar-se, tênues, sobrepostas por uma nova e única, inconsistente.
Abandonaram as peculiaridades, abriram mão dos amigos e confidentes, abstiveram-se de defender idéias.
Agarraram-se a um amor sôfrego, trôpego, dominador e exigente, quatro olhos olhando em uma só direção.
Entrelaçaram as mãos, as idéias, os gostos, o tempo e os pensamentos.
Viveram siameses, engolidos, unidos, dia após dia, fins de semana, meses, anos.
Aos poucos perderam a alegria, o viço, a graça, o riso, o brilho nos olhos.
Largar as mãos os deixava perdidos, entrelaçá-las não trazia paz.
Irritaram-se um com o outro, agrediram-se, maltrataram-se.
Até o momento em que, cansados de não mais suportar-se, apartaram-se.
Tornaram-se dois, esvaziados e transparentes.
Tita - 17/02/2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Que dirá minha lembrança?

Minha lembrança diz coisas que se misturam e formam um quadro multicolorido, desses que ocupam toda uma parede.
Passeia por diferentes lugares, rememora arrepios, anseios e momentos deliciosamente completos.
Fica pequena e grande e, num repente, faz-me sentir tanta mas tanta saudade, que é capaz de tornar-me a mais triste das pessoas para, em seguida, lembrar-me de que a tristeza só vem porque houve muita felicidade.
Por vezes sussurra baixinho assuntos íntimos que procuro manter unicamente dentro de mim. Sorrindo, tapo meus ouvidos para que não fujam e se espalhem.
Há dias em que grita, a danada, não aceita minha indiferença, grita de novo, teima em atirar de volta coisas que prefiro não lembrar.
Minha lembrança, vez ou outra cala-se, extasiada, deixando-me viver novamente os melhores momentos já passados.        
Passeia comigo e, a cada novo acontecimento me cutuca, lembrando-me de um antigo que se juntará ao novo, formando uma cadeia cheia de ondas.
É minha companheira, a minha lembrança.
Por isto sempre a mantenho ao meu lado e dou-lhe as mãos, agradecida pelo fato de permanecer comigo, permitindo que eu leve para o futuro a soma das tantas e tantas coisas boas que já vivi!
Tita - 14/02/2011

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Musical

É como uma amizade musical, sabe como?
Assim: a gente escuta uma musica e gosta, e um dia descobre que ele gosta também. Aí a gente pensa: hummm, sabe que pode ser que esse cara seja um cara legal?
Depois, como quem não quer nada a gente pergunta: que musicas você tem? E descobre que ele tem um monte de musicas que você gosta. Aí a gente pensa: hummm, e não é que esse cara parece ser bem legal?
Outro dia você chega com um pendrive e pede: me dá uma musica? Ele dá, não só uma, mas um monte. Você pega o pendrive, leva p’ra casa, grava tudinho e pensa: esse é um cara legal!
Ainda um outro dia, ele vem até você e pergunta: ei, você escutou essa musica? É super boa, você quer? Aí você diz EU QUERO!!!!!.
Ele grava a musica p’ra você, você leva pra casa e pensa:
Esse cara é O cara!!!
E ele passa a morar no seu coração.
É assim uma amizade musical.

Tita, 10/02/2011
Para Dong, meu amigo musical.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Rachadura na parede

Sentada, olhava fixo, sem conseguir desviar os olhos.
Há quanto tempo existiria a rachadura na parede? Era funda, parede grossa, casa de outras épocas.
Contavam-se tantos casos... Haveria galerias escondidas, sarcófagos perdidos nos porões, portas falsas que levavam a calabouços? Quantas vidas teriam passado por ali, deixado sua marca, suas cenas diárias, suas palavras perdidas no ar? Seria verdade que as paredes guardavam as histórias?
Olhar parado pensava aposto que sim, esta parede sabe muito, muito mais do que mostra.
Não conseguia sair dali.
Imaginou crianças brincando pela sala grande, rufares de saias agitadas, rubores, beijos furtivos, tardes de bordado, jantares fartos, arfares de peitos, espartilhos apertados, risos contidos, chaves amarradas na cintura, escuridão nas noites sem luz.
Num repente enrubesceu, respirou com dificuldade, sorriu sozinha, sentiu-se participando das cenas imaginadas.
E então medo, o corpo todo se arrepiou. Será que já vivi aqui?
Uma tábua rangeu.
Apavorada, não olhou para trás. Saiu correndo, bateu a porta, reuniu-se ao grupo de pessoas que, na varanda, tomava café. Sorriu como se nada fosse e achou melhor se calar. Ninguém acreditaria mas ela sabia e, para aquela rachadura na parede, não olharia nunca mais.
Tita 07/02/2011