quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ta-tu-ra-na


A primeira lembrança era a de uma taturana verde claro, movendo-se lentamente sobre uma folha verde escuro.
A folhagem forrava um muro bem mais alto do que ela mas, a taturana, estava na altura dos olhos.
Sabia que não podia encostar o dedo, a avó dizia que taturana queima, tinha tanta vontade de pegar!
Passou horas olhando o movimento do corpo comprido, devia cansar aquele mover-se com tantas perninhas, ela só tinha duas e não andava deitada, andava de pé. Gente andava de pé e gente, quando não andava de carro ou bonde, ou onibus ou sei lá, andava a pé.
A-pé.
Ah, gente também entrava pela porta de um avião e voava junto com ele.
A taturana ia devagar passando pelas folhas. Alguém chamou, fingiu não escutar, queria ver aonde iria aquela coisa estranha e linda e aflitiva em que não se podia mexer. O fim daquele caminhar de mil perninhas nunca chegava...
Pegou um galhinho, cutucou de leve. A taturana parou. Cutucou de novo, o bichinho encolheu juntando todo o corpo. Ficou metade do tamanho! Que interessante...
Esperou um pouco, cutucou de novo, colocou o galhinho na frente, abaixo, ao lado...ai, ela grudou no galhinho e veio com ele ai, ai que medo, vai chegar até a minha mão, largou tudo, quase caiu no pé descalço, pulou para traz e agora, taturana no chão, alguém pode pisar ou ela, de vingança, vai entrar em casa, vai até o meu quarto, vai subir na minha cama, vai me queimar!!!
Correu, pegou uma vassoura, empurrou, bateu, bateu, bateu, empurrou para dentro do canteiro de terra, nem viu se morreu ou não, largou a vassoura, correu, correu, chorando, chorou, chorou, soluçou, perguntaram o que foi, nunca disse.
Tita
27/04/2011

Tudo a ver
"Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação."
Caio Fernando Abreu em "Caio 3D"

terça-feira, 26 de abril de 2011

Harmonia

O importante era prestar atenção às cores. Isto sim era importante.
De resto, tudo passara muito rápido, desde a magreza de que bem se lembrava,os banhos de água doce, as entregas sem nexo. 
Ela sempre fora tão, tão...
Uma tarde sentada no chão e um ele no sofá, primeiro beijo, primeiro gostar, amar tanto, viajar no doce da boca e então, a lembrança de uma praça, sentindo a liberdade na alma.
No metrô parava do lado direito para não atrapalhar a passagem pelo lado esquerdo. Costumava fazer tudo muito certinho.
Mas isto também ja passara.
Pequenas coisas que voltavam e já não significavam.
A questão, no momento, era prestar atenção às cores e através delas alcançar a harmonia.
Isto sim era importante.
Tita - 26/04/2011
Imagem: Carolina Parrot - John James Audubon  - google images

Tudo a ver:
"Ampliar a arte? Não! Antes, toma a arte para ir contigo na via que é mais estreitamente a tua. E liberta-te"
Paul Celan em "O Meridiano"

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Tomando café

Já tomei um café, daqui a pouco tomo outro, fico mais um pouco e vou-me embora.
Ou tomarei mais um café?
Decerto vou perder o sono, mas acho que é isto que as pessoas que esperam fazem. Tomam um café, depois mais outro café...
Vou pedir uma garrafa de água. Tratarei o café como se fosse vinho: alguns goles de café, alguns goles de água, mais café, mais água. Ou deixo o café de lado e tomo apenas a água. Se bem que, na verdade, não estou com sede.
A mulher na mesa ao lado não parece esperar alguém. Come um doce e lê uma revista. Estico os olhos, queria saber qual é a revista. Analiso a fisionomia, acho que não está lendo a Caras ou a Contigo, deve estar lendo no mínimo a Times, não, deve ser a Isto é, não...desisto! Ela que leia o que quiser.
Eu deveria ter trazido um livro, já que decidi que esperaria. Ou, volto ao pensamento de tomar mais um café e ir-me embora.
A sola do meu pé está coçando, será que irei viajar? Dizem que quando a sola do pé coça  é porque se vai viajar e, quando a orelha fica quente é porque alguém está falando de nós. Minha orelha não está quente, ninguém está falando de mim e eu já me cansei de ficar sentada aqui.
Chega.
Dane-se a água e o café.
Eu vou para casa.
Tita 11/04/2011