Tantas vezes juntas ao longo da vida e não me lembro da cor dos olhos dela. Como é possível?
Estranho, aquele olhar.
Percebi quando, aos dez anos, sentou-se pela primeira vez no meu colo para pentear meus cabelos.
Hoje nos vemos pouco porém, aparece por aqui sempre que algo de ruim lhe acontece e então, ainda hoje, senta-se no meu colo e penteia meus cabelos.
Caso esteja bem telefona-me vez ou outra, alegre, contando coisas, rindo, dizendo-se feliz.
Mas eu sei, ah se sei! Há algo de estranho naquela voz, tão estranha quanto o olhar que não me lembro que cor tem.
Eu me lembro bem de que quando fala, nem olha nos olhos. Aliás, finge que olha, mas eu sei!
Eu a conheço e sei coisas dela que nem mesmo ela imagina que alguém saiba. Eu sei porque vi, muitas vezes. Mas não comento, que não sou de comentar, e além do mais (coitada) teve motivos, uma vida sofrida isso sim foi o que teve.
Por isto estranhei quando telefonou ontem calma, tranquila, não parecia a mesma. Então contou-me que foi contratada por uma empresa grande, salário bom, perguntei mas vai fazer o que? Vender livros, falou! Você não sabe da paixão que eu tenho por livros? Sim, eu sei... Desde bem pequena lia muito, até compulsivamente, qualquer livro, qualquer anuncio, qualquer revista, trancada nos quartos, no banheiro... Dava-se bem com os livros mas vende-los? Saberia? Diga, como foi que conseguiu o emprego? Entrevista? Aonde? Uma mulher? Que perguntas ela fez?
Disse-me que contou tudo: sua vida, a infância difícil, o casamento, os filhos entristecidos, a terapia, a mãe criança, o pai alcoólatra, o choro que chega por vezes sem motivo (mas você contou isso? Numa entrevista de trabalho?). Contou. Contou muito de si.
Mas eu sei que aquilo, ela não contou. Não contou porque pensa que ninguém sabe. E eu sei que não olhou nos olhos de quem a entrevistou. Sem duvida fingiu olhar e enganou bem porque, tivesse olhado firmemente, quem quer que seja teria visto aquele algo tão estranho naqueles olhos que eu não me lembro de que cor são. Aonde será que aprendeu a olhar esse olhar que quando não quer ser visto não se mostra?
De qualquer maneira, é bom que tenha conseguido o emprego! Espero que dure. Os últimos duraram tão pouco... Com o tempo (pouco) as pessoas percebem que há algo que incomoda, e muito. Ficam desconfortáveis porque não conseguem descobrir o que é...
Eu sei mas não digo.
Então acontece como sempre, vem me ver chorando, senta-se no meu colo e nada diz. Vai ver sabe que eu sei...Penteia meus cabelos em silencio enquanto lágrimas escorrem, tantas que chegam a molhar minha roupa. Não digo nada. Acaricio seus cabelos e, devo confessar, choro com ela.
E rezo, isso mesmo, rezo para que em alguma próxima entrevista seja lá quem a entreviste não perceba o que eu sei e dê a ela a chance de ser contratada novamente. Quem sabe algum dia consegue realmente superar tudo aquilo?
Mas de que cor mesmo são os olhos e por que será que eu não me lembro que cor têm?
Tita- revisitado em 16/04/2012
Tudo a ver
Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço
Mia Couto em "Raiz de Orvalho e outros poemas"