Havia um corpo estranho dentro dele.
Podia senti-lo movendo-se pelos caminhos do sangue e depois instalando-se, misteriosamente, hora em um órgão, hora em outro.
Tinha medo de que algum dia se instalasse no coração e que seu peso fizesse o coração parar de bater. Algumas vezes conseguia esquecer-se dele e então podia andar leve pelo mundo, sentindo-se igual aos outros.
Quando ainda jovem costumava perguntar aos amigos se sentiam o mesmo mas logo achara melhor calar-se porque não encontrara ninguém que, como ele, carregasse dentro de si algo que não era seu. Se falavam no assunto, dizia que nunca mais sentira nada, que provavelmente fora sua mente adolescente e criativa que o fizera sentir coisas bizarras.
Porém aquele corpo continuara ali, dentro de si, desde o mais remoto que conseguia lembrar-se.
Naquela noite, acordou sobressaltado, escutando uma voz que o chamava. "Quem é? (gritou) Quem é?"
Então a coisa se mexeu (dentro dos rins desta vez) e a voz veio de dentro, como um jorro incontrolável. "Eu, aqui!"
Pulou da cama socorro, "sai dai, quem é você?"
"Eu sou o corpo dentro do seu corpo. Aquele que você deveria ter sido e não foi. Chegou a hora."
Apavorou-se."Como? O que vai fazer?"
"Vou comer você, aos poucos. Não se preocupe, será indolor. Comendo seus pedaços internos, poderei finalmente ser eu."
Chamou a mulher e a filha, tremendo de medo, contou, pediu ajuda. As duas entreolharam-se e disseram "você precisa descansar".
Mais uma vez constatou que ninguém acreditaria nele, ninguém o entenderia.
"Sim, descansar."
Deitou-se e fechou os olhos. A coisa andando dentro dele, movimentando-se como nunca. Encolheu-se, ficou imóvel e, com horror, sentiu-se esvair, aos poucos, aquela coisa movendo-se com uma rapidez que nunca tivera.
Adormeceu.
Quando acordou não sabia aonde estava. Levantou-se e ao olhar para a cama levou um susto. Havia um corpo ali, sem vida, encolhido sobre os lençóis.
Uma mulher chamou "venha tomar café!"
Disse "já vou''. E, imóvel, riu, vencedor, enquanto via aquele corpo sobre a cama sumir, virar neblina e sair pela janela.
Tita 03/06/2012
Tudo a ver
" Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça. Vai parecer coisa de maluco..."
Chico Buarque em "Leite Derramado"