quinta-feira, 26 de março de 2020

Espera


Respirava profunda e pausadamente com a boa bem aberta. O barulho era como o de alguém com um escafandro, mergulhado em  água.
E ficava parada, escutando o barulho do respirar.
Estava assim há muito tempo: parada, respirando, escutando.
Talvez se lembrasse desse momento se algum dia tivesse dificuldade de respirar.
Então talvez pensasse em como teria sido bom aproveitar essa respiração em lugar de ficar parada, com a boca aberta, apenas ela,  o escafandro e nada mais.

Tita
26/03/2020
Tudo a ver
"O respirar dos adormecidos é um ruido que inquieta. Como se neles soasse uma outra alma"
Mia Couto em Terra Sonâmbula - As letras do sonho

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Lembrando do poeta que me lembrava





Nas peles que se tocam há um mar de memórias, que se lembram, que ainda sentem.
O resto é o amanhecer lembrando, o anoitecer lembrando, a lembrança de ti.
Zedu 2008

Tudo a ver
"Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar, tão profundo, nítido e largo que era. A sensação de ser era uma visão aguda, calma e instantânea de ser o próprio representante da vida e da morte. Então ele não quis dormir, para não perder a sensação da vida.
Clarice Lispector em Aprendendo a viver.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Arrábida

A solidão e o silêncio podem ser devastadores.
Tita
Portugal, 02/11/2017

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Lá dentro

 
Minha alma treme.
Som de corda esticada.
Muito tensa,
faz música,
desafinada.
Balbucia,
sem controle.
E gira,
fora do ritmo.
Tita NY - 22/11/16

Tudo a ver
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Saramago

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Blowing

Enquanto as folhas tremem ao roçar do vento
o ar grita ao balanço dos galhos,
e a noite se esvai, fria e calma,
penso.
Nos desencontros, nos desvarios, nos desatinos e nos confrontos 
do que resta
das verdades
de nós dois.




Tita
NY, 20/11/2016

Tudo a ver
"The answer, my friend, is blowing in the wind"
Bob Dylan


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Enigma


Sempre escorregava.
Nos pingos de água, nos pisos lisos e no gelo da neve mas, principalmente,nas palavras.
Passava por elas deslizando; 
Escapavam-lhe inexplicavelmente. 
De algumas conseguia apanhar a primeira ou ultima silaba porém,deixava escapar as do meio. Então, guardava apenas os pedaços e, de posse desses, passava a procurar, incansavelmente, suas partes.
Um dia deu-se conta de que tinha uma silaba nas mãos. Apenas uma.
Sem saber de onde teria vindo procurou encontrar-lhe o sentido.
Escutou-a, mas nada dizia;
encostou-se nela, não havia aconchego; 
passou-a em seu corpo, sem sensações. 
Então soltou-a no ar.
Voou como se tivesse asas. 
Rodopiou, flutuou e fez desenhos contra o céu. 
Depois, caiu-lhe novamente nas mãos.
Até hoje a mantém e procura, em vão, uma forma de decifrá-la.

Tita 29 de janeiro, 2016

Tudo a ver
"Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia"
Mia Couto em "idades cidades divindades"

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Espaço



Fechar os olhos ao sol e sair do mundo.
Boiar em águas refrescantes deixando o pensamento correr
Escutar as árvores, os pequenos animais, os insetos, o vento
Sentir a água a roçar o corpo, como um carinho.
Nada mais.

Tita 07/01/2016

Tudo a ver
Eu morro ontem,
 Nasço amanhã, 
Ando onde há espaço. 
Meu tempo é quando.
Vinicius de Moraes

sábado, 5 de dezembro de 2015

De noite

Não entendia o porque daquele incessante acender e apagar de velas. Noites foram feitas para se dormir, coisa que não lhe estavam permitindo.
Flashes daquela luz a incomodavam, ainda o cheiro da parafina, o barulho do fósforo riscando o papel áspero.
Impossível dormir.
Levantou-se, encaminhou-se para o clarão.
O saber que havia alguém acordado acalmou aquele que clareava a noite sem parar.
Então, a que se levantara encontrou-se perdida no escuro de breu.
E lá ficou até o clarear do dia, sem saber o porque do acender das velas.
Tita - novembro de 2014 

Tudo a ver
As velas, são extensão da vontade e dos pensamentos daquele que as acendem.
Internet

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Distancia


Tirou a canoa do barranco do rio e colocou-a na água. 
Os gestos firmes e certeiros, o pensamento confuso.
Certezas? Não tinha.
Então sentou-se na tabua que era o banco e pôs-se a remar.
Descendo o rio, quase sumiu no horizonte.
Ela, que pensava ser uma saída breve, percebeu.
Ele, sem perceber, distanciou-se cada vez mais, sem volta.
Tita
Escrito em 17/11/2014

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Objeto



Dava-me calor aquele corpo aboletado em mim.
Meus quatro pés firmes no chão não se arqueavam mas chegavam a suar.
Com que força agarrava meus braços; decerto imaginando que se os largasse, cairia.
Cheguei a bufar, gemi um pouco.
Aprumou-se; acho que ficou preocupado. 
Levantei um dos pés, cambaleei um pouco. Tremeu, levantou-se de um salto.
O que foi? (alguém perguntou).
Cadeira estranha (disse ele).
Finalmente respirei.
Acho que aqui ele não se senta mais.
Tita 03/12/2015

sábado, 30 de maio de 2015

Menino

Eu sei que você é lindo 
Porque um dia vi o menino macio e doce que hoje se esconde.
Por ele, transbordei de carinho e amor e o abracei e pedi que me enlaçasse a cintura.
Quando veio o grande vento, meu menino fugiu e nunca mais se deixou ver.
Que saudade tenho dele e de quando, a brincar, me mordia as orelhas 
e então, 
com sua pele macia, 
se aninhava em mim.

Tita
30/05/2015

Tudo a ver
“De vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno, bem no meio duma praça, então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta, mas tanta coisa, que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você, sem dizer nada só olhando e pensando: “meu Deus, mas como você me dói de vez em quando…”
Caio Fernando Abreu

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Calcinha

Não sabia qual colocar. 
Há tanto tempo não se viam! 
Na verdade, as que comprara quando costumavam se encontrar estavam, há muito, sem uso. 
A preta trazia a lembrança daquela noite deliciosamente inesquecível em que haviam amanhecido abraçados no sofá. 
A chocolate lembrava o orvalho no corpo, à luz das estrelas. 
Havia também a verde, com florzinhas delicadas. Ele gostara daquela e até escrevera poesias sobre o que lhe causava o simples lembrar da pequena peça. 
Talvez fosse melhor comprar uma nova. 
Ou ainda, poderia pensar em algo diferente. 
Imaginou os dois conversando, uma mesinha ao meio. 
Bebericando, relembrando fatos, os corpos cada vez mais perto. 
Quando as bocas se aproximassem e o abraço fosse inevitável, ela 
diria: “não estou usando nada embaixo!” 
E então, deixaria tudo por conta dele. 

Tita Ancona Lopez 
Escrito em 21/09/2007 

Tudo a ver
What is essential is invisible to the eye
The Little Prince

sábado, 10 de janeiro de 2015

carpe diem


Silencia na garganta,
a voz q'inda tem a dizer.
Silencia no gesto
o carinho que aflora.
Silencia no corpo
o desejo que arde.
Num repente,
o incerto.
Carpe diem.

Tudo a ver
No seas loca, filtra tus vinos
y adapta al breve espacio de tu vida
una esperanza larga
Horacio

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014


O ser apaixonado é solitário
pois que o sentimento que o toma é indivisível.
Tita - dezembro 2014

     Tudo a ver

Eu tinha visto na sua solidão, uma excelente amiga para a minha solidão. Eu achei que elas pudessem sofrer juntas, enquanto a gente se divertia!
Tati Bernardi

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Nós


Ainda vivo o carro rodando macio pela noite, 
musica forte,
casos contados nas mil tardes no sofá,
beijos macios e cheios de molejos.
Escuto as palavras e sinto os abraços,
o gosto dos chocolates nas noites vadias.
Então procuro suas costas macias.
Suas mãos me buscam, 
sua boca me amolece,
me entontece,
me tira do mundo.
Sussurros se encontram,
você sorri e se conta meu.
Conto-me sua.
E assim nos sabemos
e nos temos
no sempre melhor que, 
de nós dois,
será.

Tita
para E. 
4/11/2014


sábado, 1 de novembro de 2014

Elo Perdido



Sou rios que deságuam em mar aberto e curvas mal traçadas de caminhos que não chegam ao destino. 
Sou o abandono despido em lençóis amassados de noites de frio sem cobertor e o escolher incerto dos re-começos trôpegos. 
Sou as noites cheias de flores de cores fortes, as feridas feitas de cortes, sou o mel derramado das abelhas sem lar. 
E torno-me o silencio de madrugadas sombrias em que ouço distante meu riso alegre e recolho-me solitária a tecer, incansável, rede que de mim me proteja e que abrigue meu ser solto no ar. 
Sou a lágrima que rola e cresce, me toma e afoga-me em lagos distantes que levam ao fundo e não me deixam voltar. 
Sou o fundo de areia, a sereia que re-surge, o tempo que urge, o gozo incompleto. 
E então me transformo no incerto, no fluido que não se fixa, no abraço sem braços, no aconchego perdido, no elo partido. 
E permaneço, atônita e perdida, no oco da musica a preencher o silencio que se torna duro e ímpar, numa noite sem fim. 
Tita

Tudo a ver
Existem alguns tipos de morte que não se pode obrigar alguém a reviver, um tipo de conexão tão profunda que, quando se rompe, você sente o estalo do elo partido... Frase de Jeff Vandermeer.


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Fuga

Corro, longo corredor.
Por todos os cantos
teus olhos pedintes me chamam,
brilham no escuro,
me aterrorizam.
Não paro, fujo e mais fujo
Teus braços se multiplicam em busca de mim
corro e me desvencilho.
Pulo dedos,
afasto ombros,
atravesso cotovelos,
fujo das mãos .

Tita
Julho, 2014.
Tudo a ver
"que mania de julgar têm os seres humanos, e como nos desassossegam e nos desconcertam os casos moralmente ambíguos que não permitem situar com precisão a linha de luz e a de sombra"
Rosa Montero em "A Louca da Casa"

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Repentes

Se eu falar demais, 
rir fora de hora, 
Não significar seu sonho, 
perder a fala, 
perder a cor...
Se não for engraçada 
ou inteligente, 
nem culta, 
interessante 
ou preparada...
Se você se irritar 
e ficar louco ...
Se se entristecer
e eu calar, 
nada disser...
Se eu enfeiar
com olheiras 
e cansada...
Se num repente
eu para você 
for nada,
prometa
que me dirá.
Não me deixe 
sem aviso,
Não se vá.

Tita - 01/10/2014

Tudo a ver
Tão abstrata é a ideia do teu ser
que me vem de te olhar, que, ao entreter
os meus olhos nos teus, perco-os de vista
e nada fica em meu olhar, e dista
teu corpo do meu ver tão longemente,
e a ideia do teu ser fica tão rente
ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
sabendo que tu és, que, só por ter-me
consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
a ilusão da sensação, e sonho,
não te vendo, nem vendo, nem sabendo
que te vejo, ou sequer que sou, risonho
do interior crepúsculo tristonho
em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
Fernando Pessoa

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Invólucro



D.arc.y - imagem flickr
Escuto a voz, tão perto mas neste momento tão longe. 
E escuto mais e mais uma vez.
Então gravo a minha e a solto no ar.
Neste momento da vida experimento sentimentos que, 
mesmo se um dia vividos, 
são novos, inesperados e muito fortes.
Nos meus pensamentos guardo o que me dá o sonho 
que me leva em frente.
Amo o invólucro que nos mantém unidos, 
nossos planos que iluminam as possibilidades 
e
as palavras que trocamos em todos os momentos.
Amo o possível que se abre 
e o fato de nos darmos as mãos 
para percorrer o caminho.
Amo o exequível, o superável, 
o atingível, o feliz que sabemos.
Amo a presença que se faz forte, 
segura e reconfortante.
Somos todas as possibilidades 
que agarro em meus braços.
Assim como seguro tua presença, 
sempre,
em mim.

Tita - 29/09/2014
Tudo a ver
A vida era passar o tempo juntos, 
era ter tempo para caminhar juntos de mãos dadas, 
conversando calmamente enquanto viam o sol se pôr.
Nicholas Sparks

sábado, 27 de setembro de 2014

Girafa

Houve aquela que se colocou naquela situação em que não gostava de estar. Tudo falta de controle.
Na verdade não se sabe o porque dessa necessidade de tanto controle sobre si mesmos. Sempre tendo de controlar-se.
Então vem o branco. Tudo muito puro e imaculado, o que só decorre do controle.
Por fora bela viola, por dentro...
Seus pedaços já estavam desbotados. Desabotoados de afetos. Talvez fosse impar. Ou uma barca furada.
Lembrava-se da canoa em que não conseguia ficar de pé. Os salva vidas eram sempre necessários porque mesmo que os rios corressem mansos, havia pedras no fundo e era perigoso, muito perigoso mergulhar de cabeça e se machucar.
Aos pouco ia aprendendo onde estavam as pedras, aqui e ali. Algum dia soltar-se-iam do fundo, boiariam e passariam a bater-se umas nas outras? Que grande perigo sair nadando por entre elas e estar entre duas que poderiam bater-se.
Grande perigo.
Tirou o pé da canoa. Estava ficando tonta com os pensamentos que, não sabia de onde, vinham nela se instalar.
Era verão quando tudo acontecera? Fora de repente, mas não se lembrava de ter sentido calor. Talvez porque sempre houvesse água e podia refrescar-se quando quisesse.
Era tempo de garças brancas e de mergulhões aos montes, na beira dos rios. Delicados e bonitos.
Ao longe algumas emas poderiam ou não aproximar-se. Não havia girafas nem leões.
Só seu pescoço comprido que, alto, quase se destacava da cabeça.
O problema era este: o pescoço comprido. A cabeça ficava alta e cabeças altas veem demais.
Tita - 27/09/2014

Tudo a ver
Se abres os olhos,
abre-se a noite de portas de musgo,
abre-se o reino secreto da água
que emana do centro da noite.
E se os fechas,
um rio, uma corrente doce e silenciosa,
inunda-te por dentro, avança, torna-te obscuro:
a noite molha margens na tua alma.
Octavio Paz em "Agua Nocturna"

Profusão



Diz que devo escrever sem pensar e que das palavras impensadas, surgirá a base do que deve ser escrito.
Deveria criar a partir das pequenas coisas, um mundo cheio de cores que se misturassem. 
Estão dentro de mim mas não sei colocá-las no de  fora e, quando as de fora trago para mim, são quase sempre as escuras.
Tita - 26/09/2014

Tudo a ver
Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.
O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.
Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...
Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?
Octavio Paz em "Visitas"

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Falta


Sinto sua falta
Saudade 
de me aninhar nos seus braços, 
de escutar suas histórias, 
de ter sua presença carinhosa e doce.
Sinto ainda seus beijos macios 
e seus abraço forte e aconchegante
me segurando firme perto de si.
Saudade 
de sua chegada sempre alegre 
dos passeios, 
dos almoços, 
dos jantares, 
das conversas sem fim.
Sinto sua falta.
Saudade
do seu cuidado comigo, 
da sua vontade de me acariciar
das suas palavras doces 
do seu sussurrar no meu ouvido
do seu fazer-me rir 
em todos os momentos.
Sinto falta
da sua presença enorme
que ocupa meus dias
minhas horas
e meus pensamentos.
Saudade 
de me afogar na fumaça do seu cigarro
de ter pena de você ir embora
de esperar o dia seguinte para de novo
estar com você
ver você
falar com você
escutar você.
Sinto falta
de encontrá-lo todos os dias
e de cada dia ser melhor do que o anterior
e melhor do que o anterior
e melhor ainda do que o anterior
Sinto sua falta.
Sinto sua falta
Sinto sua falta.
Tita - 22/09/2014

Tudo a ver
Que dias há que n'alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.

Luis de Camões

sábado, 6 de setembro de 2014

Xô!

Hoje a realidade me pegou,
de assalto.
Invadiu minha sala,
estremeceu minha paz,
surrupiou momentos.
Ladra inconveniente
e incompetente.
Vá-te,
não te quero aqui!
                                               
                                                             Tita 06/09/2014
Tudo a ver
Tens nas tuas mãos fluidas,
O poder que mal sabes,
De alterar as marés
Que me atravessam
Silvia Chueire

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Dizeres

Quando eu disser, 
se disser,
Direi nos seus ouvidos, 
devagar.
No dia em que disser,
direi.

Talvez em algum momento eu pense em dizer
Mas ache que não devo
Ou talvez pense que direi 
se você disser
E, 
mesmo se você não disser, 
talvez eu diga.

Pode ser que  direi um dia e então, 
nunca direi que não disse.
No dia em que eu disser, 
se disser, 
não será uma frase rouca, 
nem será coisa pouca.

Porém não se iluda pensando que fatalmente direi.
Porque só direi 
se for profundamente sentido
E se para nós dois, 
fizer todo o sentido.
Tita 04/09/2014

Tudo a ver
Entre mim e o meu silêncio
Há gritos de cores estrondosas 
e magias recortadas dos sonhos 
que acontecem naturalmente
José Luis Peixoto em "A criança em ruínas"

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Requiem Eterna Doneis Domini

Esvaiu-se aos poucos. Muito lentamente.
A cada dia perdia um pouco do brilho do olhar que, cada vez mais ultrapassava o que houvesse a ser visto. 
A mim parecia que não lhe importava mais ver.
Falava com dificuldade e então, não falou mais. Desanimou-se e tinha dores.
Ficamos ali, uns nervosos, outros muito tristes, outros fazendo o que tinha de ser feito.
Nas ultimas noites dormi ao lado dela, com um misto de medo e curiosidade, procurando descobrir o que sentia.
Quis lhe dar conforto mas mal consegui adivinhar do que precisava.
Na ultima noite entendi que me pediu água e, enquanto corri para buscar ficou impaciente e gritou "Água", Água"! Entendi, mesmo que tivesse sido dito daquela maneira quase ininteligível.
Retornou em mim toda a impotência que sempre senti perto dela. Quantas tentativas de que se sentisse segura comigo, todas em vão, como esta, da ultima vez.
Deixava, e até me pedia, que cuidasse de sua vida financeira. 
Porém, da emocional, nunca deixou que eu me aproximasse.
E foi-se indo assim, aos poucos, o corpo magro e cheio de dores que mal conseguíamos aplacar.
Demos-lhe despedidas lindas, a missa, o velório, a musica, tudo como gostaria.
Mas  nunca saberei se percebeu o meu esforço da vida inteira,
Nem se algum dia desejou que eu realmente fizesse parte.
Tita 01/09/2014

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Retalhos de vida



Poderia ir  àquele bar de música, à praia, ao domingo perdido no sol
Dançar, onde danço sozinha ou com quem nem pergunto o nome, dançar por dançar.
Passear pela noite, entrar onde me aprouvesse, naqueles bares estranhos em que gosto de estar, escutar músicas pela noite adentro

Poderia ir ao cinema, depois comer um sanduíche, comentar o filme com amigos
ou música clássica, escutar o piano, o coro, o violino
Sentar-me em uma mesa em um café, caderno na mão,observar as pessoas

Poderia deixar-me ficar, ler um livro, deitar-me no tapete da sala e escutar música bem alto,
folhear antigas recordações e re-chorar o já chorado, re-rir o já rido, re-lembrar o já vivido, o que poderia render lindos textos
nadar e depois estirar-me ao sol escutando conversas esparsas, tomando uma caipirinha

Poderia visitar aquela amiga que, como eu, gosta da noite imprevista, fugir de todos os perigos e ver amanhecer o dia tomando cerveja sentadas na calçada do posto de gasolina
deitar na rede escutando o mar, dormir fora de hora, levantar-me de madrugada e sair pelo mundo naquela cidade pequena onde sempre encontro alguém para conversar
Depois voltar para a cama, dormir de novo, acordar com o sol já alto e re-dormir deitada em uma espreguiçadeira, ao ar livre

Poderia ligar para os amigos, combinar novos programas, chamar pessoas, conhecer novos lugares
descobrir saraus, ir às casas em que há reuniões de novos poetas, escutar o que gosto e o que não gosto nem um pouco, ou apenas observar
passar os fins de semana no campo com minhas irmãs, que correm doces e mansos e cheios de gente a contar coisas, e perguntar e trocar

Poderia visitar amigos que moram distantes, chamar outros para virem à minha casa, 
sentir a delicia de estar com gente com quem nem preciso falar
andar pelas ruas, sentar nos bancos das praças e ver o sol de inverno por entre as árvores,
cozinhar tomando copos de cerveja, musica alta, comer e dormir.

Poderia.

Ou poderia estar aqui onde estou, 
a ter uma colcha de retalhos macia que me cobre e que
a cada dia renasce com um novo retalho que me conta uma nova história,
tornando os dias cheios de imprevistos e de sentimentos.

Neste momento a vida se renova e sabe a flores silvestres, vidros perfumados, fragrâncias ímpares e novos sabores
e é vivendo este momento que apreendo o que vale a vida 
quando vale a pena da vida, ser neste momento, vivida.

Tita - 29/08/2014

Tudo a ver



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Molde



Derrubo a garrafa d'agua; coloco a cafeteira sobre a boca do fogão mas esqueço-me de acender o fogo; acendo o fogo mas esqueço-me de colcar a cafeteira. Então desisto, não quero café.
Lembro-me da sua camisa amarela que pensei ser cor de rosa e do abraço apertado da nossa despedida, minha mão deslizando pelas suas costas macias.
Então seguro sua cabeça junto a mim e seus cabelos fartos escorrem entre meus dedos.
Escorrem meus sentimentos e tomam posse de meu corpo
Escorrem suas caricias que se alojam em cada canto escondido do meu ser
Escorro eu, encostando-me a você e ao seu fisico forte.
Escorro pelo chão, pelas frestas, pelo escuro da noite, pela madrugada solitária,
espalhando-me em busca do seu abraço.
Entro nos bares, nos copos de água, nos becos pequenos, nas mesas de sinuca, nas ruas iluminadas pela lua cheia.
E quando o encontro, sorrio, mergulho em seus olhos, me entrego e me amoldo a você.

Tita - 27/08/2014

Tudo a ver
O amor tinha de ser apreciado sem se fugir para um otimismo ou pessimismo dognmáticos, sem se construir uma filosofia dos medos ou uma moralidade dos desapontamentos. O amor ensinava à mente analítica uma certa humildade, a lição de que, por mais duro que ela lutasse para atingir certezas imóveis (enumerando suas conclusões e colocando-as em séries arrumadinhas), a analise nunca poderia deixar de ser falha - e, portanto, nunca se afastaria do irônico.
Alain de Botton - Ensaios de amor