domingo, 30 de novembro de 2008

Folha

Voou. Como se fosse um pássaro. Era uma folha fina, quase transparente. O interessante é que era colorida, de um lilás bem forte. Tentei pegar, não consegui. Corri um pouco mas logo cansei. As crianças foram atrás:Corre! Corre! Quem pegar ganha um doce. Pisaram na lama, caíram no chão, tornaram a se levantar,correram mais um pouco. Mas não conseguiram. A folha fez uma curva em U e veio novamente na minha direção. Agora eu pego! Pega! Gritaram todos. Pega! Agora! Pulei, levantei os braços! Pulei de novo, o mais alto que consegui. Encostei nela, roçou nos meus dedos, tenho certeza de que quase peguei. Não consigo! Não consigo! Corram, corram, temos de pegar. E lá foi a meninada de novo. Correndo e gritando. Pega! Pega! É minha! Pega! Nada. Um vento forte mudou o rumo de tudo. Ao longe, cansados e desapontados, vimos a folha ir embora. Um pontinho lilás cada vez mais alto, voando no céu, como um pássaro. Lembrei-me de nunca ter visto um pássaro lilás. E lembrei-me de nunca ter visto uma folha lilás. Por isto eu queria tanto aquela. Sabe-se lá aonde pousaria. Sabe-se lá que caminhos tomaria. Sabe-se lá se alguém a pegaria. De minha parte, tive de me conformar, inconformadamente, com a única afirmação possível: Não consegui pegar! 30/11/2006
Jaraguá do Sul, 30/11/2008

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Aqui Jaz


Foi enterrado ao pé de um árvore mas eu não quis ver o enterro. Acho que foi remorso, tristeza e um certo alivio que devo confessar. Não dei atenção a ele nos últimos anos de vida! Se bem que ele também não me dava muita bola desde que mudamos para a fazenda. Gostava mais de correr, caçar, sujar-se de lama. Quando voltava e queria meu colo, estava sempre sujo e desajeitado. Eu não pegava. Então ele se ia e passou a vir cada vez menos, passei a chamar cada vez menos, até que um dia a noticia: morreu. Escorreu uma lágrima. Fui até o pomar, olhei debaixo do pé de caju aonde estava, duro, com os dentes à mostra. Fiquei chocada. Descuidei de você, nos afastamos, como foi possível? O tempo passou, mudei-me, nunca mais voltei lá, os donos são outros... Mas ele está lá, mesmo que não haja mais árvore, ele está lá. Foi meu companheiro durante muitos anos. Saudade dele pequeno quando se aninhava em mim, saudade dele quando corríamos na grama, saudade dele quando tremia de medo dos cavalos no meu colo. Faltou a placa: Aqui jaz Café, que só trouxe alegria e nunca reclamou da que não lhe deram.
18/11/2008

Derrame

É um vexame quando a gente se derrama.  
Fica prostrada, derramada, aguada, sem forma, sem começo nem fim. 
Eu, para me derramar, é só começar...  
Eu me derramo. 
Quando a tristeza e a injustiça me tomam, se começo a chorar, é um dilúvio. 
Não consigo segurar nada dentro, não seguro, não aplaco, não me controlo. 
Então extravaso, explodo, me esparramo pelo chão num derrame ininterrupto, tristeza sem fim.  
Só quem ja viu sabe como é.  
Só quem já sentiu sabe o que é.  
Tita 27/11/2008

RELAMPAGO

Há dias em que não chove, o ar está calmo, o céu azul. Mas é como se o céu estivesse cheio de relâmpagos. Acontecem coisas que não podemos segurar. O mundo se contorce, luzes saindo para todos os lados. Dá vontade de entrar debaixo da mesa! Um dia entrei debaixo da mesa. Foi durante uma queimada. Já viu uma queimada? Norte do Brasil, fazenda só mato, filha bebê. Derrubada na foice, no facão, na moto-serra. Tudo para o chão. Verde caindo, barulho de árvore tombando. Depois silencio o que tinha vida resta tombado no chão para secar. Ate que chega o mês de agosto, mês da queimada. Acero para o fogo não passar para as fazendas vizinhas, todo mundo pronto, pessoal saindo para todos os lados da fazenda, tacar fogo! Bebê no colo, olho da porta da cozinha... Sobe densa e negra a fumaça do fogo. Barulho de estalos, fuligem começa a cair. Sentamos no degrau, olhos nostálgicos. Estamos queimando o mundo. E então acontece, num repente. No meio do cinza surge uma fumaça que dá voltas, cada vez mais concêntricas e mais rápidas. Um rodamoinho, um funil que caminha para todos os lados e vem vindo meu Deus, para fora da queimada, para cima de nós. Vem vindo, não é possível, como? Vai sair de lá.?Mas vem! E sai do mato e entra para o quintal e corro eu com bebê no colo para debaixo da mesa. Barulho, vento zupt, zupt, zupt, barulho redondo, como explicar esse barulho? Passa pela casa. Sobre a mesa telhas e telhas se estilhaçando. Depois silêncio. Embaixo da mesa minha bebê e eu, incrédulas. O rodamoinho passou. Destelhou metade da casa, tudo em cima da mesa.. Saímos de gatinho ela diz óia, óia, óia, e eu penso: é a natureza que se revoltou.  
Tita 27/11/2008
Para Deborah

Leve Torpor

Naqueles dias vadios tomávamos vinho no café da manhã.  
Após conversar pela noite quase inteira, dormíamos um pouco e ao acordar, tomávamos vinho. 
Um torpor me invadia e era como se eu não pertencesse à vida real.  
Desejei muitas vezes que a hora de ir embora não chegasse enquanto,em meio aos goles de vinho, escutava sua voz bonita e minha risada misturando-se no ar. Sem preocupações, sem futuro, só nos dois ali sozinhos, nos entregando ao momento. 
Muitos desses momentos ficarão gravados para sempre na minha memória de lembranças, como um brinde da vida que me presenteava com a possibilidade de sair do ar por um dia ou dois, vividos intensamente.  
Que dádiva ter vivido o leve torpor do vinho desfrutando da sua companhia alegre e agradável naqueles dias fora do mundo.  
São Paulo 15/11/2004.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O Noviço e as Madres Superioras

Silencio na noite, todos recolhidos ao seu leito, o noviço abria com cuidado sua porta e partia para a área proibida da clausura. Pé ante pé entrava no pequeno quarto aonde a Madre Superiora, corpo desnudo, cabelos soltos e coração arfante o esperava, nua sobre a cama. Deliciavam-se lambiam-se, amavam-se, explodiam palavras de encorajamento que sempre acabavam em perdões sussurrados, Deus haveria de entender e a cena se repetia todas as noites. E era tanto carinho e amor que dali se desprendia, tantas conversas, tantas noites de riso e alegrias, tantas confidências sussurradas. Deus sabia que era necessário, bonito e sincero e então, sabiam, perdoava. Dia chegou em que a Madre Superiora do convento da cidade vizinha veio visitar. O noviço, encantou-se, não conseguiu segurar o encanto, imaginava o corpo da Madre Vizinha, viciado, pensou, viciado que estou em Madre Superiora, derramou-se em gentilezas, esteve presente em cada momento, aprovando cada frase da visitante, sorrindo ante cada observação. Da Madre da Casa,segura ao terço, percebia apenas o olhar reprovador e a prece ininterrupta: Deus, não me tire este noviço, meu bem mais profundo, minha alegria, aquilo que me faz ir em frente nesta vida que escolhi. E acreditava, ele é bom, Deus não o deixará cair nesta tentação que de tão torta lhe saltaria aos olhos. Ele jamais faria isto meu Deus, tão sinceras são suas palavras, tanto já dividimos, tanto temos a dar um ao outro. Deus não deixará. Foi com horror que viu o laço entre os dois se estreitar. Até que naquela noite de agosto, escutou os passos de seu noviço que vinha mas, para seu espanto, passava reto por sua porta, sumindo seus passos ao final do corredor. Ele fora até a Visita, ela tinha certeza. Levantou-se, paramentou-se e descalça foi até a porta do cômodo que era oferecido às Madres Superioras de passagem. Lá, ouvido colado, escutou os gemeres, os dizeres e todos os sons que haviam um dia lhe pertencido. Deus, como me dói o peito, como me dói o coração, como me dói a vida, perdida, sem o meu menino. Dia seguinte os viu, expressão beata, que bem sabia significava êxtase, o mesmo que costumava sentir em todas as manhãs, meu Deus, como viverei sem? Trancou a porta do quarto, seu noviço não receberia mais e preparou sua vingança. Escutou as batidas tímidas no inicio da madrugada naquela e nas duas noites seguintes, apertando o travesseiro nos ouvidos porta trancada em resposta. Na terceira noite, escutou que novamente para a Vizinha (que parecia viera para ficar) dirigia-se o menino e então, arquitetou seu plano. Foi em 27 de setembro, um sábado (ninguém sabe, até hoje, o porquê do que aconteceu): amanheceu o noviço a chorar, trancado em seu pequeno quarto dizendo que de lá jamais sairia. A ninguém contava o que se passara. Veio o padre perguntar, ele chorando nada disse. Vieram os outros noviços, vieram as freiras, veio até o jardineiro. Então chamaram o pároco da aldeia, senhor de grandes habilidades psicológicas que adentrou o pequeno quarto saindo apenas muitas horas depois, sem nada conseguir. Enquanto isto a Visita arrumava suas malas e, ao café da manhã anunciou sua partida. Todos estranharam porque parecia viera para não ir nunca mais. Ninguém soube o que a fizera mudar de idéia...Apenas a Madre Superiora. A ida da Visita confirmava o sucesso de seu plano. A Visita se ia e ela sentia-se vingada e satisfeita pois Deus ouvira suas preces e as poções haviam surtido efeito. O noviço seria para sempre apenas um noviço porque demonstrações de hombridade, em seu físico, não voltariam a ocorrer nunca mais. Pensando nisto, a Madre Superiora encaminhou-se para as preces do fim do dia. No corredor de acesso à capela percebeu a figura tímida do novo noviço que caminhava à sua frente. Um sorriso lhe ocupou os lábios e, segurando o terço apertou-o entre os dedos, com a certeza de que Deus, mais uma vez, escutaria suas preces. 27/10/2008

Circo


Deitada na rede, sem vontade de viver. 
A repetição da vida, os círculos viciosos, o desamor, a solidão, as tentativas frustradas, o coração abatido, a perda das esperanças... 
Imersa em minhas tristezas não vi o carro que se aproximava. 
Quando me sentei já estava lá, rodando portão adentro. 
Pessoas estranhas, expressões bizarras, começaram a descarregar objetos grandes e coloridos, sem nada dizer. 
Ei, quem são vocês, o que é isto? 
Mais carros chegaram, mais caixas descarregaram. Armaram, martelaram, montaram, sem me dirigir palavra. 
Por favor, não invadam assim a minha casa... 
Nada disseram. 
Estou cansada, quero dormir, por favor vão embora... 
Nada. 
Voltei para a rede, Cansei. Afinal, eu só queria mesmo era dormir. Deitei-me e adormeci, alheia ao que acontecia. 
Acordei com a musica alta. O circo estava armado. Trapezistas, palhaços, equilibristas, todos ali, apresentando-se no meu jardim. 
Meu coração foi até a boca quando a trapezista ficou preza por uma perna só, ri alto com a palhaçada daquele arlequim desajeitado, fiquei curiosa com a mágica diferente. 
Porque estariam todos no meu jardim? Quem os havia enviado? 
Levantei-me, guardei a rede e decidi voltar à vida. 
Em algum lugar existe alguém que quer me ver feliz. 
Em algum lugar existe alguém que gosta muito de mim.  
Tita 25/11/2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Ampulheta

Sentada na sala vazia olhava a chuva. Do vidro grande tinha a visão do gramado molhado e das gotas que pendiam dos arbustos de flores, mas não prestava atenção. Com uma das mãos, distraída, re-iniciava o despejar da areia na ampulheta de vidro. E olhava a areia fina descendo pelo túnel estreito, durante um minuto. Virava a ampulheta e olhava de novo e de novo e de novo... Assim, contava o tempo, minuto a minuto. Quem sabe na próxima virada...o que aconteceria? Quantos minutos seriam necessários para que alguma coisa acontecesse? Aconteceria alguma coisa se ela não fizesse nenhum movimento para isto além de girar a ampulheta com a mão? Seria real o fato de que os acontecimentos nos chegam mesmo que nada façamos? Seria real que só nos chega o que nos esforçamos para alcançar? Resolveu marcar os minutos e a cada virada da ampulheta fazia um risco preto no caderno, formando quadrados de cinco riscos, um risco a cada minuto. O dia foi correndo, o caderno cheio de quadrados de cinco riscos. Nada aconteceu, constatação a cada minuto, nada fez, esperou, constatou, girou a ampulheta... Apenas a mão girando ampulheta, a mão riscando o caderno, a mente sem nada pensar. A chuva continuando, o silencio pesando, a mão virando a ampulheta, girando a ampulheta, olhando a ampulheta...
24/11/2008

domingo, 23 de novembro de 2008

Dilúvio


Por que fica nessa chuva? O que faz com que permaneça encharcado, com a água escorrendo pelo corpo? 
Por que se abandona solitário a escutar o barulho da água? 
Por que se atormenta de passado e não adentra o caminho que leva ao sol? 
Por que se afoga sem abrigo, figura ímpar, a andar com a água até os joelhos? Por que mergulha a deixar que o oco das águas profundas se aposse dos seus ouvidos? 
Por que das lentes embaçadas me olham seus olhos, expressão incerta? 
Por que se atira à mudez e à casa vazia, deixando que a barreira de água nos separe? 
Por que? 
Tita 22/11/2008

Silêncio

Ao sol faço silêncio e escuto; os pássaros, os estalos, o barulho da água, o murmúrio de vozes. Quieta, sinto o prazer com que meu corpo recebe os raios quentes e os transporta para dentro de mim. Se calor, mergulho, falo comigo mesma baixinho, deixo-me abraçar pela água que acaricia meu corpo, a natureza que me recebe e me diz bem vinda. Tenho paz, os conflitos se vão e se, não sei nem porque, a tristeza aflora do nada, deixo que corram as lágrimas, que se misturem ao suor e ao molhado. Então sou mistura de quente e frio, sensações de luz e água. Sou grandeza de mim quando estou ao sol, sou minha vida toda no calor de meu corpo, sou meus sentimentos transbordando nos poros e sou o escutar-me em minha musica interna. Vindos do fundo da alma ouço os barulhos que nascem do âmago de meu silêncio, onde escuto de mim e do difuso multifacetado da minha vida interior. Ao sol, faço silêncio. 21/11/2008
TUDO A VER “Meu lar é o interior da minha cabeça” (Rosa Montero em " A Louca da Casa")

Sussurro


Vem, me chama alto, 
me pede, 
me leva 
e deixa que eu deslize meu corpo no teu. 
Sente a pele, 
o macio, 
deixa que eu te guie, 
enrosca o corpo, 
aperta com a tua a minha mão. 
Enquanto eu me apequeno no teu corpo grande, 
envolve-me no teu abraço, 
me beija o teu beijo quente 
e sussurra. 
Sussurra pra mim o que eu quero escutar.  
Tita 21/11/2008

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Lembrar


Tenho saudade de ti.. 
Há dias em que tenho tanta saudade de ti 
que as horas não passam 
que o ar não se mexe 
que o pensamento só corre 
se lembrar coisas de ti. 
E lembra de ti 
e então lembra de ti 
e só quer lembrar de ti. 
Porque contigo o que houve foi poesia
foi riso foi o que não podia 
o que não era 
o que não seria. 
Tenho saudade de ti. 
Há dias em que tenho tanta saudadede ti 
que as horas não passam 
que o ar não se mexe 
que o pensamento só corre 
se lembrar coisas de ti. 
E lembra de ti 
e então lembra de ti 
e só quer lembrar de ti.
19/11/2008

Quadro

Saí de lá com alguns quadros, este é seu, este é meu... 
Prefiro os de paisagem. 
Não sei o que ele fez com os dele, os meus pendurei nas paredes, mesmo assim ficaram vazias, peguei outros emprestados de uma amiga, outra amiga pintou um para mim. 
Mudaram-se comigo do primeiro para o segundo apartamento, ocuparam quase os mesmos lugares que ocupavam no apartamento anterior. 
Vez em quando fixo o olho em um e no outro. 
Imagino cenas, dentro das paisagens, entro neles e faço as minhas histórias. Quando estou cansada, como hoje, gosto de me transportar para o pé do Ipê amarelo e ali fico durante muitas horas. 
Algumas vezes retorno com um texto, uma frase, outras retorno com uma vontade enorme de ver pessoas, sair, beber, conversar. 
Outras ainda, saindo do recosto do Ipê, mergulho na grama colorida do quadro emprestado, sento-me ao lado de Simão Pedro na Santa Ceia ou entro na pequena casa no meio do mato. 
E me emolduro, me imiscuo, faço parte. 
Algum dia fico e não volto mais. 
Tita19/11/2008

Adjetivo

Faceira passou, sabendo que ele a observava.  
Sabia que olhava seu corpo, o movimento dos seus cabelos e seu jeito de caminhar. Sabia.  
Sabia também que ele nada diria pois assim havia sido, desde a primeira vez. Arrumava-se para ele, penteava-se para ele, perfumava-se para ele.  
Para que ele a olhasse. 
E passava, para que ele a acompanhasse com os olhos.  
Ele a queria. Queria que chegasse até ele. Acreditava que seu olhar dizia tudo. Ela sabia. Queria que ele lhe dissesse. Apenas uma vez, nem que fosse apenas um adjetivo. Não falasse, ela não chegaria.  
Ela passou, e passou novamente. 
 Ele olhou, desejou, e olhou novamente.  
Ele a queria, 
 Ela o queria.  
Ele não disse. 
Ela não foi.  
Tita 04/06/2007

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

CASULO

Sozinho, pensando na vida, recordando fatos. Então a constatação: passara a vida toda a empilhar sentimentos. Um após o outro, esmagando o outro, pesando sobre o outro. Desde a mais tenra infância, especializara-se em empilhá-los meticulosa e simetricamente. Andava com cuidado pelo mundo, com medo de derrubá-los. Agora, estava muito difícil carregar o fardo. A cada passo, o medo de perder tudo. Havia de se fazer algo com esta pilha. Mas ao longo dos anos não conseguira chegar à conclusão do que fazer. Talvez conseguisse trazer o mundo da sensibilidade para o mundo da realidade. Talvez trazer para sua vida uma celebração, deixando que a pilha se esparramasse pelo chão? Conseguiria assim fazer aparecer o sentimento que trouxesse em si mesmo o conteúdo perfeito? E se ao esparramar a pilha os sentimentos se perdessem, escorregassem, não parassem em canto algum? Se fossem redondos como bolas? Como saber que formato teriam? Perigoso. Ficar sem a pilha e sem sentimento algum seria catastrófico, tão acostumado estava a carregá-los... Decidiu colocar delicadamente a pilha no chão de areia, mas sem largá-la por completo. Amarrou firmemente todos os sentimentos com um cordão de cipó, que achou perdido na praia. Sentou-se sobre ela. E ali ficou, mais um a pesar na pilha interminável. Passaram-se dias, passaram-se meses, passaram-se anos. O tempo foi formando um escudo à sua volta. Como um casulo. Lá dentro, protegido de sua própria pilha, continuou a ensimesmar-se, concentrado, recolhido, ponderando sobre o que fazer com o que havia acumulado pela vida inteira.
6/11/2006
para você, que vive no passado

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Sinuca

Hoje vou a um bar. Sozinha. Mas tem de ser um bar como aqueles de filme, simples, feio, homens jogando sinuca, mulheres sentadas nas mesas. Entro sozinha porque sei que ninguém nota. Hoje sou sombra. Não é sempre que se consegue ser sombra. Hoje sou e posso aproveitar. Vou ao bar, beber, olhar, pensar. Pego uma cerveja, sento numa cadeira de madeira, mesa de ferro, bem no canto, no escurinho. Fico ali, bebendo. Escuto o barulho da bolinha na mesa de sinuca no intervalo das musicas. Vejo passarem o giz no taco. Os homens de camisa aberta, as mulheres riem alto, pernas de fora. Eu hoje não quero companhia. Estou triste. Perdi o chão, caí do cavalo. Quero ficar só. Quem sabe observando aprendo a jogar sinuca. Nunca me interessei... Acho que atropelei as etapas, andei rápido demais pelo caminho, tropecei. Escutei coisas que não queria escutar. Vi a cena desmoronar. Fico aqui no canto. Penso? Não sei se quero pensar. Mas hoje sou sombra, posso aproveitar. Vou jogar sinuca, acho até que sei, assim não penso no desmoronar da cena. Vou lá jogar com eles. Fico ao lado da mulher de roxo e do homem com tatuagem de jacaré. Estes torcem por mim. Quando chega minha vez eu me debruço sobre a mesa, braços firmes, olhar fixo e com um golpe certeiro, tranqüilo e firme, cutuco a bola 8. Ela entra na caçapa. E pronto. Esta tudo resolvido. 
Tita 14/11/2008.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Jogo

E o jogo de vaza, lembra? O do burro? Eu morria de medo de ser um. Tinha o de peças pra mover, de perguntas pra responder e tinha também aquele de quem errar paga uma prenda. Sem falar na queimada que a gente jogava no meio da rua, no jogo de dardos, de dados, da amarelinha desenhada a giz, de bolinha de gude... Bons tempos aqueles dos jogos no meio da rua que, com o tempo, foram substituídos pelo jogo de boliche, o ping-pong, o banco imobiliário e o resta um. Um dia mudei completamente o jogo, comecei a jogar charme, aprendi o jogo de palavras e o jogo da sedução, entrei no jogo e até escondi o jogo. Vez em quando faço o jogo do empurra ou até me jogo, como hoje, prá cima de você. 13/10/2008

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Liquefeito

Ultimamente tenho tido muitas duvidas, mas a que mais me perturba é a que diz respeito ao futuro. Tenho pensado muito, mas não consigo decidir que caminho tomar. 
A verdade é que não sei se quero liquefazer-me, como todo mundo. Tenho presenciado cenas em que as pessoas vão se desmanchando aos poucos, amolecendo, virando pasta e acabam por escorrer feito líquido. 
Eu tenho duvidas. Por que escolheriam este caminho? 
De minha parte, preferiria transformar-me apenas até o estado pasta e então paralisar o processo. Soube que é possível. É tudo uma questão de escolha, disseram. Todavia, até hoje não vi ninguém que fizesse esta opção, não sei por que. Acho pasta muito melhor do que aquele escorrimento que vejo pelas ruas quando volto para casa a pé. 
As pastas, parece-me, poderiam ater-se a algo se assim quisessem. Ser pasta não tira todas as possibilidades ao passo que liquefazer-se não tem nenhuma continuidade. Fora o cheiro que se percebe no ar quando a liquefação acaba de acontecer. Cheiro fétido... 
Não sei quantos anos me faltam, mas de qualquer maneira não está longe o dia em que terei de comunicar minha decisão. Tenho quase certeza de que decidirei fixar-me no estado pasta.
Se ainda tenho dúvidas é porque não gostaria de ser o único no meio do nada, um pasta só, sem nenhuma companhia. Talvez seja este o medo coletivo e, entre tornar-se pasta solitária ou derramar-se fetidamente no asfalto mesclando-se com os restos de todos, preferem o ultimo. Medo de solidão. Só pode ser. 
Levantarei a bandeira? Serei o primeiro? Não sei. Ainda não. Mas que não queria liquefazer-me, não queria. Acontece que não acho quem possa trocar idéias a este respeito comigo. Provavelmente meu cérebro já veio programado para ser pasta, mas se assim for, aonde colocaram os outros programados como o meu? Por que não agrupar os mesmos tipos nos mesmos bairros? Por que tornar difícil o que poderia ser tão fácil? 
Acho que querem me convencer. Deve ser algum tipo de estudo sobre a inegável mudança da programação cerebral decorrente do ambiente social... 
Não. Não vou colaborar. 
Recuso-me e, aliás, acabo de me decidir: liquefazer-me, não vou! 
11/11/2008

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Soro

Não iria se preocupar. Afinal, de tão vivido, já sabia como funcionava a coisa: o terror tomava conta, o estomago se contraía, a tristeza ocupava os poros, o choro vinha, era difícil desculpar mas, com o tempo, acabava passando. Argh, que preguiça que dava ter de lidar com esse sofrimento que parecia nunca ia embora e ter de se convencer a cada dia de que uma hora, sem sombra de duvida, iria embora e o que restava era apenas uma ferida que lá ficava. Vez em quando dava uma purgadinha, mas cada vez menos forte. Purgar vez em quando era preciso. Na vida purga-se. Se não se purga, incha e uma hora explode. Melhor purgar. Afinal, somando e dividindo, nem guardava tantas feridas, eram poucas. Algumas lá da infância que nem purgar purgavam mais, outras da adolescência que já tinham cicatrizado. E não é que na vida adulta, bem quando achava que tinha aprendido a não se machucar, ainda acontecia de se ferir e até bem feio? As da vida adulta eram as que mais purgavam. Mas ele sabia. Ti-ra-va-de-le-tra. Por isto não estava entendendo esta ultima que cismava em voltar a incomodar. Toda hora saindo aquele liquido amarelo, que manchava os olhos, o coração, o seu modo de se colocar perante a vida. Corria se esconder. Não queria purgar na frente dos outros. Algum dia, pensou, com tanta evolução na medicina, inventariam algum remédio que desse conta de fechar a ferida num vapt-vupt. Talvez um soro, uma pílula... Preferia um soro. Melhor. Soro vinha num vidro grande, guardava-se na geladeira, era barato e não tinha contra indicações. Remédios já tomava muitos e pra que mais um? Tinha certeza de que a ferida, existisse um soro, já estaria curada. Mas mesmo assim, de uma maneira ou de outra, uma hora se curava. Não iria se preocupar. Afinal, não era ele que de tão vivido já sabia como funcionava a coisa? 10/11/2008

domingo, 9 de novembro de 2008

Intimidade

Beijamos tanto, mas tanto que as bocas doeram. 
Ainda assim, queríamos beijar mais. Há beijos que transtornam, tiram do ar, arrancam a alma do corpo que sem alma nem pensa, quer mais, nem sabe o que faz. 
E tornou-se impossível parar de beijar. 
Amamos tanto, mas tanto, que os corações doeram. Ainda assim, queríamos amar mais. Há amores que transtornam, tiram do ar, arrancam a alma do corpo que sem alma nem pensa e segue o amor e quer mais, sem saber o que faz. 
Sofremos tanto, mas tanto, que entramos em vácuo. Ainda assim, teríamos sofrido mais. Há sofrimentos que nos transtornam, arrancam a alma do corpo que sem alma fica só o buraco que o sofrimento traz. 
E então nossos limites se mesclaram. 
Nossa intimidade se perdeu e ainda assim, nos mesclamos mais e nos seguramos tanto, e foi tanto o um do outro tomar, que nos perdemos tanto, mas tanto, que foi impossível nos re-encontrar. 28/08/2008

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Mar

Ficava olhando do terraço lá de cima aquela espuma branca que ia e vinha. Dava pra escutar um barulhinho de longe e o murmúrio das pessoas na areia, não muita gente, nem chamavam a atenção. Mas as ondas, as ondas sim, prendiam a vista, fixava o olho e chegava até a ficar mareado de tanto olhar aquele ir e vir e um ligeiro movimento para a esquerda e para a direita, não conseguia parar de olhar. E sorria com a espuminha, que espocava lá em cima quando a onda estava no alto, depois descia com toda a força quem não saísse de perto era quase arrastado. Às vezes via a formação de um funil, que medo que dava e tinha gente que ficava la dentro, como podia? Outros passavam por cima com suas pranchas. As cores mudavam vez em quando do verde para o azulado e manchas verdes mais escuras, barcos lá longe, para onde iriam, de onde vinham, gostava de imaginar os barcos furando o mar com força, as lanchas em fúria empurrando os espaços que abriam na água. Ficava horas, onda vai onda vem, gente entra, gente sai e aquilo ia entrando na mente e no corpo, saindo da realidade, imaginando a sensação da espuma na pele, o sal, a cabeça molhada, o barulho oco de fundo do mar, o corpo flutuando, quase caia lá de cima. Ia ficando quente, ia ficando hipnotizado, ia ficando destacado da vida real e então em supremo esforço conseguia tirar o olho e nem esperava o elevador, descia as escadas correndo, correndo atravessava a avenida, corria pela areia os pés queimando, corria, corria, tropeçava, levantava, entrava correndo que delicia no mar, mergulhava, boiava, virava sal, virava água, virava mar.
Tita 7/11/2008

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Parafuso


Fiquei para lá e para cá, 
sem saber as respostas chorei o que podia 
abandonei-me ao acaso 
deixei que me levassem 
que dissessem 
que ousassem 
que contassem. 
Ri e chorei 
agradeci e xinguei 
amei e odiei 
sofri e des-sofri . 
Quando lembro inda sofro 
e des-sofro 
acho que não vale à pena 
depois acho que vale sim 
as duras penas. 
Despiroquei 
não entendi mais nada 
girei para todos os lados 
indefini-me não me fixei 
e ainda não me fixo. 
Só me lasco 
vou fundo 
me enrosco 
e me torço. 
Feito parafuso 
6/11/2008

Provação

Face tesa, presa, seca 
Boca muda, rouca, mouca 
Prova muita, dura, pura. 
Grito rouco, mouco, preso 
Gesto duro, pouco, teso 
Choro, seco, breve, louco. 
05/11/2008

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Excruciante

Cutuca a alma,
bole o corpo,
a cabeça,
paralisa idéias,
respiração sôfrega,
calor percorre,
estomago contrai.
Corpo alerta,
pânico,
ebulição,
vertigem.
Tira o sono
é aflitivo,
doloroso,
excruciante.
Vontade de deitar,
fazer-se morto,
abandonar o barco,
fugir de avião. 5/11/2008

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Igual

Quando puder me liga
me pega
me beija
com muita força.
Quando puder me apertaAdicionar imagem
e me aperta mais
e mais
e mais.
Até que eu perca o ar.
Até que nossos corpos se fundam em um.
Até que eu saia do mundo
e não mais me encontre.
Até que a vela se acabe
a musica emudeça
a lua se ponha
e só reste nossa respiração.
Suave,
compassada,
junta,
igual.
10/10/2006

Tudo a ver

Não costumo transcrever citações, textos ou poesias que não são de meus amigos escolhidos. Porém hoje inauguro esta nova possibilidade, o "tudo a ver" porque a frase abaixo me foi enviada hoje pela Sylvia e tocou-me. Transferida para o escrever, é o que temos procurado, Sylvia Loeb e eu, conseguir com a palavra que nos propusemos a escrever, uma a cada dia. Escrever, num repente, num lapso de momento, numa arrancada só. Deixar que a criatividade nos pegue de assalto sem muita elaboração e colocar para fora o vivido ou o inventado, testando nossas possibilidades.  

" Se você não é bastante hábil para fazer um croqui de um homem que se atira pela janela durante o tempo que ele leva para cair do quarto andar ao solo, você nunca poderá produzir grandes quadros." Delacroix
postado em 3/11/2008