sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Guerra fria

Eu não me mexi!
Foi a poltrona vermelha em que eu estava sentada que começou a crescer de um jeito estranho, apertando meu corpo por todos os lados. 
Procurei levantar-me, alguma coisa me prendia, quis  soltar-me, não consegui, pensei entrar em desespero.
Gritei, piorou.
Pedi, implorei, apertou e cresceu mais.
Então fiquei quieta, imóvel, procurando nem pensar, tal era o medo. Num momento acreditei que sufocaria porque não parava de crescer e colocar-me, cada vez mais, atada, fechada, abafada, isolada de tudo.
Fechei os olhos, procurei levar meu pensamento longe, mergulhei no meu mar mental, escutei musicas mentalmente, consegui sentir-me fora do corpo e percebi que, agindo assim, nada mais me faria mal.
A poltrona poderia crescer, apertar-me o quanto quisesse, eu não sentiria mais nada. Estava em meu mundo, aonde nada poderia me alcançar.
E então aconteceu: a poltrona murchou, desistiu, voltou a ser uma simples poltrona.
Acho que aprendeu que o que quer que fizesse, de nada adiantaria.
Eu me safo!

Tita, 28/10/2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A rainha de copas

Há momentos em que nada do que você faz ou diz, alcança outros olhos ou ouvidos da maneira que você pressupôs.
É quando o verdadeiro você e suas reais intenções ficam invisíveis para o mundo.
A transparencia toma conta a tal ponto que chega a apavorar. Nenhuma lógica entende a sua, nenhuma palavra que você pronuncie exprime seu pensamento.
Então cale-se e não se mova.
Querendo ou não, você já está mudo.
O caminho torna-se um labirinto e o leva, invariavelmente, de volta ao mesmo lugar.
Mesmo que não acredite, você está cego e perdeu o senso de direção.
Antes que o sentimento se estenda e assalte também sua sanidade, recolha-se; faça silencio; não pense. Procure não fazer movimento ou produzir som.
E, se a rainha de copas estiver por perto tome cuidado, proteja-se. Qualquer falha poderá levá-la a gritar: cortem-lhe a cabeça...Cortem-lhe a cabeça!


Tita 25/10/2010
desenho/foto: Juls
http://www.flickr.com/photos/desenha_ju/

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Lichtenstein

O dilema de todo o artista é o tema (você diz) e resolvemos que (sim) pediremos um vinho branco, seco.
Brindamos ao nosso feito (seu e meu) e sabemos somos (nós dois) artistas, cada qual a seu modo, cada qual em seu caminho.
Se sim (diga-me por favor), qual seria o meu (o seu) tema?
Por não saber a resposta nos alegramos quando o  vinho chega e pensativos (cada um a seu tempo), nos imaginamos dentro do enorme quadro de Lichtenstein porque sabemos que, naquele sofá, poderiamos estar (fossemos outros), você e eu.
Nós dois que (um dia) nos perdemos em caminhnos paralelos que poderiam (como você diz) ser perpendiculares.
Ficou pelo meio a segunda garrafa de vinho que (pensamos) nos aproximaria e seguimos (cada um), com a promessa de (quem sabe um dia) estarmos juntos por ao menos um fim de semana, como nunca estivemos.

Tita, madrugada, 21 de outubro de 2010

Tudo a ver
Do I know many ways, that I can make you laugh, or do I only know how to make you cry?
Leon Russel

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Espírito




















Não sei de onde veio meu espírito,
que corpos habitou,
que galáxias conheceu,
que curvas trilhou.

Não sei aonde aprendeu o que me trouxe,
que cursos freqüentou montado em seus cavalos,
que conversas teve que lhe abriram os olhos da mente.

Não sei o que fez,
se foi bom ou ruim em outras vidas,
se já evoluiu nos degraus espirituais,
se fez o bem feito
ou procurou safar-se, sempre.

Não sei nada do que foi antes de escolher-me
e nem mesmo sei por que motivo fui a escolhida
para tê-lo em mim.

Não sei.

Mas sei que foi ele
e só ele
que trouxe,
em mim,
o que me faz
ser eu.

Tita - revisto em 13/10/2010

foto: The Spirits - Vijay
http://www.flickr.com/photos/vijayphulwadhawa/4334203512/

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Becos

Procurei nas galerias subterrâneas, andei pelos becos,
percorri corredores longos e escuros,
entrei nos túneis sem luz
e nas casas abandonadas.
Cansada, deixei-me ficar numa rua de movimento, 
escutando a conversa dos que passavam.
Não sei como,
de pé e encostada na parede,
adormeci.
Senti-me cair e acordei sobressaltada.
Ja era dia.
Mais um,
pensei
e reiniciei a procura pelas galerias subterrâneas.
Andei pelos becos,
percorri corredores longos e escuros,
entrei nos túneis sem luz...

Tita - 12/10/2010

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Arte e chuva

Banco de trás de um táxi, fim de tarde chuvoso.
Transito, escurece, farol abre e fecha sem que o carro se mova.
Gosto dos desenhos que os pingos de chuva formam na janela, gosto do reflexo que emanam com os raios das luzes da rua.
Fosse uma artista desenharia os pingos que, pelas sombras, se formam em minhas mãos, nas roupas, no caderno.
Pudesse, lhes daria o movimento que vejo quando mexo minhas mãos e então se deslocam, caminhando sobre mim, formando desenhos em constante modificação.
Fosse artista, faria dos pingos uma arte em movimento.
No banco de trás de um táxi, apenas os escrevo.
Silencio.
Ninguém buzina,
Conformados, todos, com o caos diário.
Conformada eu que, escrevendo, viajo na sombra dos pingos.

Tita, 07/10/2010
Foto: flickr: Lu Volonghi - Duvidro: http://www.flickr.com/photos/luvolonghi/2438098925/

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O homem de azul

Andava de um lado para o outro como se estivesse muito preocupado. Muitas vezes eu o escutava  murmurar frases sem nexo, ou rir consigo mesmo.
Alguns dias vestia roupas claras mas, na maioria das vezes, usava azul marinho. Foi por isto que o apelidei de “o homem de azul”, uma vez que nunca soube seu nome.
Era azul, aquele homem. Azul marinho.
Cor de noite solitária, sem estrelas.
Eu o escutava logo cedo andando pela rua com seus sapatos barulhentos e corria para a janela. Aquele homem me intrigava e chamava minha atenção. Eu o perseguia com meu olhar tentando adivinhar seus pensamentos, seu tipo de vida, seu gênio e seus gostos.
Não, o homem de azul jamais cometeria uma grosseria.
Nem deveria gostar de estar assim tão só...
Sem duvida tinha o gosto requintado de quem já frequentou círculos fechados, dançou em grandes salões e vestiu todas as cores.
Um dia me aproximei e passei por ele, só para ver seu rosto.
Tinha profundos olhos aquele homem. Azuis marinho, como sua roupa.
Olhei, olhou-me. Fixou seus profundos olhos em mim.
Um arrepio percorreu todo o meu corpo. Eram olhos apavorantes.
Olhei bem.
Olhos sem fundo.
O homem de azul não tinha alma.
Era um corpo sem recheio que poderia a qualquer momento transformar-se em ar, sem deixar vestígios.
Corri, sem rumo, cada vez mais depressa, cada vez mais longe, procurando tirar o homem de azul de dentro de mim.
Deixei-o longe, muito longe.
Porem, muitas vezes, pego a mim mesma pensando nele, acreditando que está andando para lá e para cá com seus sapatos barulhentos.
Tita
re-escrito em 04/10/2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Tombo


Quando chegou ao cume desistiu.
Percebeu que viver o triunfo não era o mesmo que imaginá-lo.
Sem o sonho, não existia o desejo do futuro.
Sem a luta, não havia o porque do caminho.
A graça estava no esforço da subida.
Por isso deixou-se cair, bem fundo.
Só para ter o prazer de,
lentamente,
subir de novo.

Tita, 01/10 2010