sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Retalhos de vida



Poderia ir  àquele bar de música, à praia, ao domingo perdido no sol
Dançar, onde danço sozinha ou com quem nem pergunto o nome, dançar por dançar.
Passear pela noite, entrar onde me aprouvesse, naqueles bares estranhos em que gosto de estar, escutar músicas pela noite adentro

Poderia ir ao cinema, depois comer um sanduíche, comentar o filme com amigos
ou música clássica, escutar o piano, o coro, o violino
Sentar-me em uma mesa em um café, caderno na mão,observar as pessoas

Poderia deixar-me ficar, ler um livro, deitar-me no tapete da sala e escutar música bem alto,
folhear antigas recordações e re-chorar o já chorado, re-rir o já rido, re-lembrar o já vivido, o que poderia render lindos textos
nadar e depois estirar-me ao sol escutando conversas esparsas, tomando uma caipirinha

Poderia visitar aquela amiga que, como eu, gosta da noite imprevista, fugir de todos os perigos e ver amanhecer o dia tomando cerveja sentadas na calçada do posto de gasolina
deitar na rede escutando o mar, dormir fora de hora, levantar-me de madrugada e sair pelo mundo naquela cidade pequena onde sempre encontro alguém para conversar
Depois voltar para a cama, dormir de novo, acordar com o sol já alto e re-dormir deitada em uma espreguiçadeira, ao ar livre

Poderia ligar para os amigos, combinar novos programas, chamar pessoas, conhecer novos lugares
descobrir saraus, ir às casas em que há reuniões de novos poetas, escutar o que gosto e o que não gosto nem um pouco, ou apenas observar
passar os fins de semana no campo com minhas irmãs, que correm doces e mansos e cheios de gente a contar coisas, e perguntar e trocar

Poderia visitar amigos que moram distantes, chamar outros para virem à minha casa, 
sentir a delicia de estar com gente com quem nem preciso falar
andar pelas ruas, sentar nos bancos das praças e ver o sol de inverno por entre as árvores,
cozinhar tomando copos de cerveja, musica alta, comer e dormir.

Poderia.

Ou poderia estar aqui onde estou, 
a ter uma colcha de retalhos macia que me cobre e que
a cada dia renasce com um novo retalho que me conta uma nova história,
tornando os dias cheios de imprevistos e de sentimentos.

Neste momento a vida se renova e sabe a flores silvestres, vidros perfumados, fragrâncias ímpares e novos sabores
e é vivendo este momento que apreendo o que vale a vida 
quando vale a pena da vida, ser neste momento, vivida.

Tita - 29/08/2014

Tudo a ver



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Molde



Derrubo a garrafa d'agua; coloco a cafeteira sobre a boca do fogão mas esqueço-me de acender o fogo; acendo o fogo mas esqueço-me de colcar a cafeteira. Então desisto, não quero café.
Lembro-me da sua camisa amarela que pensei ser cor de rosa e do abraço apertado da nossa despedida, minha mão deslizando pelas suas costas macias.
Então seguro sua cabeça junto a mim e seus cabelos fartos escorrem entre meus dedos.
Escorrem meus sentimentos e tomam posse de meu corpo
Escorrem suas caricias que se alojam em cada canto escondido do meu ser
Escorro eu, encostando-me a você e ao seu fisico forte.
Escorro pelo chão, pelas frestas, pelo escuro da noite, pela madrugada solitária,
espalhando-me em busca do seu abraço.
Entro nos bares, nos copos de água, nos becos pequenos, nas mesas de sinuca, nas ruas iluminadas pela lua cheia.
E quando o encontro, sorrio, mergulho em seus olhos, me entrego e me amoldo a você.

Tita - 27/08/2014

Tudo a ver
O amor tinha de ser apreciado sem se fugir para um otimismo ou pessimismo dognmáticos, sem se construir uma filosofia dos medos ou uma moralidade dos desapontamentos. O amor ensinava à mente analítica uma certa humildade, a lição de que, por mais duro que ela lutasse para atingir certezas imóveis (enumerando suas conclusões e colocando-as em séries arrumadinhas), a analise nunca poderia deixar de ser falha - e, portanto, nunca se afastaria do irônico.
Alain de Botton - Ensaios de amor

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Cerne

De que manso abandono o coração se veste,
nas  nuvens a vagar, a alma efêmera,
colhendo raios esparsos de sol?
É em águas mansas que flutua o espirito
em busca do naco de si arrancado
na turbulência do mar que no rio desaguou.
Sentindo-lhe a falta no profundo do cerne
sofrendo-lhe a incompletude no espraiar-se infinito
recua diante da vacuidade do quadro
que a mente impensada um dia pintou.
Tita - 25/08/2014

Tudo a ver
Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior?A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco. 
Carlos Drummond de Andrade

Os gostares


Tinha uma vida de sempre muito a fazer, a conversar, sempre muito que restava para o outro dia e não ficava feito. 
Gostava assim.
Gostava da vida que não se repetia e que sempre a atiçava para algo mais.
Desbravava novas amizades, queria novos assuntos, inventava caminhos desconhecidos.
Ia em frente. Procurava melhorar o ruim mas, constatando o impossível, deixava-o para trás, buscando o feliz para perto de si.
Porém, tinha uma mania. Ah se tinha!
Achava tão difícil achar alguém para si mas quando calhava, lá vinha. 
Mania de gostar.
Então ficava naquele querendo, no gostando, o gostar atiçando, lembrando, cultivando.
Mania danada, concluia.
Mas não desistia porque sabia 
Que sem essa mania,
Passava pela vida e nem vivia.

Tita - 25/08/2014

Tudo a ver
O conceito "real, verdadeiramente existente", nós o tiramos primeiramente desse "nos dizer respeito"; quanto mais somos tocados em nossos interesses, mais acreditamos na "realidade" de uma coisa ou um ser. "Isto existe" significa: eu me sinto existindo no contato com isso.
Nietzsche em Outr'em-mim de Alfredo Naffah Neto.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Concha



Ria,

porque ele a fazia rir.
Do nada, falava o inesperado 
e ela ria, solta, leve.
Então riam os dois
e tudo se resumia a isto.
Quando abrigados numa concha de riso,
nada mais era necessário.
Tita - 21/08/2014

Tudo a ver
Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho, 
Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!
Machado de Assis

domingo, 17 de agosto de 2014

Barulho

Mario Howat
O barulho ascendente do que cresce aos poucos
do vento que bole nas folhas
de passos suaves na grama 
de asas que batem levemente
do trotar dos cavalos ao longe
de vozes que se misturam
de outras vidas que dentro de mim ressurgem.
O burburinho da poeira que o vento levanta
o estalo do chicote que gira no ar
a soada de um sino da infância
a cadencia das notas a criar harmonias
o ressoar de palavras que voam.
O sonoro riso a repetir-se em meus pensamentos
a vibração das mãos que tateiam
e mansas e suaves produzem musica
e embriagam dizendo à alma
que se espalhe 
desfaleça e se abandone 
num feixe
fugidio e luminoso.

Tita - 17/8/2014

Tudo a ver
Teve um barulhinho, quer dizer, um rumorzinho do ar que fez "chhhh" bem, bem, devagarinho: era um botão de rosa com um pedacinho de haste quebrada que caía na bancada. No momento em que a tocou, fez "pof", um "pof" do tipo ultra-som, só para ouvidos de morcegos ou para ouvidos humanos quando tudo está muito, muito, muito silencioso.
Muriel Barbery em "A elegância do ouriço"

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

PREGHIERA

As pessoas que nos cercam, a quem nos dedicamos com carinho tantas vezes, como saber quem realmente são?
De quantas facetas é feito um ser humano e em que dia nos depararemos com aquela horrível, que nunca pensamos existir?
A maldade intrínseca em cada um, de quanto precisa para mostrar-se; o quanto a face devastadora disfarça-se em grande salvadora das almas que julga fracas?
Como podem as pessoas fazerem pouco de seus semelhantes, ditando regras, pensando-se melhor?
Que Deus me dê a sabedoria para não julgar meus semelhantes. Pois que sou falha e cheia de defeitos igual a  eles.
E hei de encontrar o melhor de cada um.
Tita - 14/08/2014
Tudo a ver
Não há outro inferno para o homem além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes.
Marquês de Sade

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

MERGULHO

No tempo que para com o apressar do coração,
na noite que brilha através das frestas da janela,
No sol que entra pelos vidros quadriculados,
Na musica que toca na madrugada de ruas vazias,
Eu mergulho.

Pego as palavras que estremecem o ar,
Os casos contados e os medos acalmados
E no abrir das portas, na troca de ideias
E nas risadas sem fim,
Eu mergulho.

No sussurrar dos lábios que não se afastam,
No aconchego dos abraços que não se soltam,
Nas bandejas com petiscos não tocados,
Nos livros ainda não lidos,
Eu mergulho.

E solto meu corpo
Deixando que me leve a água deste rio
que desaba no mar 
E que no silencio das profundezas
deste carinho enorme,
me explode as entranhas.

Tita - 11/08/2014

Tudo a ver
Tum tum tum tum tum tum tum
Look, if you had one shot, one opportunity,
To seize everything you ever wanted
One moment
Would you capture it or just let it slip?
Eminem

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Voando



Salvador Dali
Do alto do morro
O sol vai surgindo
Eu ando na praia
Maré tá subindo

Pé fofo na areia
sandalia na mão
vou pulando ondas
pensando em canção

caranguejo sem perna
andorinha sem pé
criança sozinha
só faz o que qué

lá vai um surfando
a onda ta forte
tem outro remando
peixe, se der sorte

um anda na água
só quer nadar
eu furo a onda
quero'é flutuar

macaco no galho
cachorro no chão
só ando voando
Cabeça na mão

Tita - 07/08/2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Abraços



Vadin Stein

Deixe-me tremer!
Tenho medo que você se desintegre.
Não me desintegro, apenas tremo.
Então trema, perto de mim.
Assim.
Não sinto você tremer
Borbulho.
Borbulha?
É que borbulho, dentro de mim, quando você me segura assim.
Não sei como é borbulhar. 
É um sentir, imenso...
Eu também quero borbulhar
Deixe que o abraço se aposse de tudo.
Assim?
Assim.
Quero este abraço, sempre.
Eu lhe darei abraços. Aos maços!

Tita - 04/08/2014

Tudo a ver
"Valho-me das minhas velas para exorcizar a loucura. Por um ano inteiro eu as deixei esquecidas no escuro de um armário. Um sopro meu as fizera adormecer. E assim ficaram, como a Bela Adormecida, à espera da chama que as faria acordar. Parecem mortas. Mas sei que o toque do fogo as fara viver de novo. Aguardam a ressurreição. 
Como são humanas! Parecem-se conosco. Também os nossos corpos endurecidos podem arder de novo. Para isto basta que sejam tocados pela magia do fogo!"
Rubem Alves em "O Retorno E Terno" - As Velas

sábado, 2 de agosto de 2014

Esconderijo


No dia em que ganhei uma frase, segurei-a com a ponta dos dedos.
Aonde colocá-la? Levá-la comigo? Deixá-la na beira do caminho? 
Colocá-la no bolso e esquece-la? Guardá-la no armário? Joga-la fora? Dar de presente? 
Ignorar?
Guardei-a,  escondida e a olhei por dias a fio pois que não me atrevia a recebe-la como minha.
Pensei em  jogá-la ao vento mas pressenti que talvez corresse para pegá-la de volta.
Se a amassasse, sei que trataria de recompô-la.
Então a fiz de travesseiro e nela rocei meus lábios.
Senti seu perfume e a protegi do vento.
Ao imaginar transformá-la em texto tive certeza de seu perigo e decidi trancá-la em lugar seguro.
Desde então abro e fecho seu esconderijo. Decido por e contra ela a cada momento.
Não chego à conclusão alguma e vivo a cada dia tendo a certeza de que conviver com duvidas requer treino e aperfeiçoamento constantes e que o caminhar para recantos perigosos e definitivamente dolorosos, chega a ser uma obra de arte.

Tita 2/8/2014

Tudo a ver
"A maioria dos dramas está nas ideias que formamos das coisas. Os acontecimentos que nos parecem dramáticos são apenas assuntos que a nossa alma converte em tragédia ou em comédia, à mercê do nosso carácter."
Balzac

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Letras

Como nada me podia dar, 
deu-me palavras.
Como nada lhe podia dar, 
combinei-as como pude 
e derramei-as sobre o papel em branco,
formando frases que dei a ele,
como se fossem flores.

Tita - 01/08/2014

Tudo a ver
Perguntou-me o que é que eu escrevia nos livros. Respondi-lhe que me escrevia a mim. Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou...Transformo-me todo em palavras.
"José Luis Peixoto em Uma Casa na Escuridão"